FOTO: Nelson Kon |
Por
ter sido uma ocupação planejada — e em figurino inusitado para a época —
Brasília tem sido objeto de intensas discussões. As controvérsias começaram
mesmo antes de sua fundação, há 60 anos. A princípio, discutiu-se a necessidade
de transferência da capital para o interior. Já se falava disso em finais do
século Por ter sido uma ocupação planejada — e em figurino inusitado para a
época — Brasília tem sido objeto de intensas discussões. As controvérsias
começaram mesmo antes de sua fundação, há 60 anos. A princípio, discutiu-se a
necessidade de transferência da capital para o interior. Já se falava disso em
finais do século 18. Quando decidiu-se pela mudança nos anos 1950, ganhou
força a polêmica em torno da conveniência de se fazê-la num país com poucos recursos:
o projeto foi tachado, entre outros adjetivos, de faraônico. Notadamente quando
se revelou o projeto de Lucio Costa.
Nos
anos que se seguiram à inauguração, o deslumbramento em face do feito
arquitetônico conviveu com questionamentos sobre a adequação da cidade à vida
humana saudável. Não no sentido do espaço e da oferta de parques e jardins —
estamos justamente tratando de uma cidade-parque — mas do distanciamento
social, expressão agora em uso por causa da pandemia da covid-19. Queixavam-se
da ausência de esquinas, de burburinho, de relações moldadas não por vizinhança
e identidade cultural, mas por poder econômico e político. A capital chegou a
ser acusada de provocar separações de casais. Muita gente transferida para cá
voltava aos seus locais de origem assim que podia, horrorizada com “a frieza
monumental de Brasília”.
O
transporte baseado no automóvel abriu flanco a essas críticas. Os
edifícios, em sua maioria magníficos, de Oscar Niemeyer — apesar do inusitado
de alguns deles — não foram objeto de maior reparo, salvo pelo foco na parte
estética e uma preocupação menor com o conforto de seus ocupantes.
O
que sempre esteve em contenda mesmo foi o traçado urbano, determinante para o
fluxo e a relação das pessoas com o espaço, com os equipamentos e entre si.
Para
refletir sobre a equação urbanística de Brasília, a Agência Senado submeteu
perguntas ao urbanista Jorge Guilherme Francisconi, estudioso do Plano Piloto e
seus desdobramentos, e à arquiteta Maria Elisa Costa, filha e guardiã do legado
de Lucio Costa. Além disso, obteve o contraponto do jornalista Mario Salimon,
músico e cineasta, que realizou um documentário sobre a capital.
Maria Elisa Costa ao lado do urbanista Lucio Costa, seu pai (foto: Orlando Brito)Fonte: Agência Senado |
Depois de ler o conjunto das indagações, acho que o texto
que segue, de certa forma, responde ao conjunto delas.
Mesmo porque acompanho Brasília desde o primeiro momento,
mas moro no Rio de Janeiro, ou seja, vejo Brasília como a capital do meu país,
mais do que como capital do Distrito Federal.
A meu ver, o aniversário dos 60 anos de Brasília seria uma
oportunidade ímpar para se instituir, formalmente, o que aqui proponho.
A Bacia do Paranoá é o território original de Brasília, onde
JK [Jucelino Kubitscheck] lançou a âncora inventada por Lucio Costa, que
assegurou a transferência definitiva da capital do país para o Centro-Oeste.
Com o local já escolhido de longa data, aconteceu a decisão
extraordinária de construir a cidade, cuja viabilização contou com a dedicação
apaixonada de gente do Brasil inteiro, do presidente [da República] ao mais
modesto dos candangos — que aprendeu a construir, construindo — e surgiu do
nada, em três anos, Brasília, inaugurada em 21 de abril de 1960.
A partir de então, com o rolar dos anos, a área urbana do DF
se desenvolveu ao sabor dos ventos, misturando projetos urbanos setoriais sem
nenhum planejamento de conjunto, incorporando e regularizando invasões, etc. Ou
seja, em termos tradicionais brasileiros, a única coisa nova continua sendo o
Plano Piloto da criação da cidade.
Brasília hoje tem cerca de três milhões de habitantes — e,
bem ou mal, a identidade original do "gesto primário" sobreviveu, em
grande parte, graças ao governador José Aparecido de Oliveira, a quem devemos o
tombamento do Plano Piloto e seu entorno.
Brasília fotografada da Estação Espacial Internacional (foto: Nasa)Fonte: Agência Senado |
Para assegurar a permanência ao longo do tempo desse
testemunho vivo de um momento sem precedentes na nossa história, é importante
perceber que no Distrito Federal convivem duas situações urbanas opostas e
adjacentes: de um lado, extensa área urbana em expansão; de outro, seu núcleo
original a ser preservado.
Em termos administrativos, trata-se de duas abordagens
necessariamente opostas. Uma coisa é gerenciar o desenvolvimento urbano de
uma cidade em expansão; outra, bem diferente, tem o objetivo de assegurar a
preservação de seu núcleo original.
Explicitar essa diferença de forma clara, sem ambiguidade, é
o primeiro passo para que se estruture a gestão pública tendo em vista as
características próprias de cada caso. A parte maior da área urbanizada seria administrada
na forma tradicional das grandes cidades do país, com planejamento urbano de
qualidade, inteligente e objetivo.
Já cuidar do centro histórico é mais simples: uma vez
estabelecido institucionalmente que o centro histórico da capital federal é a área
delimitada pelo divisor de águas da Bacia do Paranoá (ou seja, delimitação
geograficamente definida), basta que toda e qualquer intervenção nessa área,
mesmo não sendo localizada dentro do perímetro tombado ou em seu entorno
direto, seja necessariamente compatível com o texto original da Portaria
314 do IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional ]— cabendo a fiscalização dessa compatibilidade a uma comissão
técnica permanente e de alto nível, criada para esse fim e com poder de veto,
contando com representantes da sociedade civil organizada, da Presidência da
Republica e do Governo do Distrito Federal [GDF].
Áreas adicionadas ao projeto original do conjunto urbanístico de Brasília (imagem: Iphan)Fonte: Agência Senado |
É da maior importância para a defesa histórica e cultural do
Brasil, que possamos proteger o centro histórico da multiplicidade de pressões
que atuam sobre a área urbana. Desta forma, inclusive, a efetiva aplicação da
legislação do tombamento de Brasília, seria menos vulnerável a manipulações do
que permanecendo, como é hoje, de exclusiva responsabilidade do IPHAN.
E nunca é demais lembrar que a própria concepção do Plano
Piloto de Lucio Costa inclui o horizonte definido pelo divisor de águas da
Bacia do Paranoá, parte indissociável da paisagem construída. Em Brasília, a
presença desse horizonte, que permite ao céu encostar no chão, é tão importante
quanto para o Rio de Janeiro a de suas montanhas.
Maria
Elisa Costa
JORGE GUILHERME FRANCISCONI - ENTREVISTA
Arquiteto e urbanista Jorge Guilherme Francisconi (foto: Roque de Sá/Agência Senado)Fonte: Agência Senado |
É preciso manter o Plano Piloto como 'cidade viva'
O
adjetivo “monumental” poderia ser perfeitamente aplicado ao currículo do
arquiteto e urbanista Jorge Guilherme Francisconi, ex-professor da Universidade
de Brasília (UnB) e da Universidade de Paris XII, consultor de órgão públicos
no Brasil e no exterior, além de diretor de empresas públicas de planejamento
urbano e transportes, entre dezenas de outras atividades acadêmicas iniciadas
em Porto Alegre, onde se formou em 1966 pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Na Syracuse University (EUA), obteve os títulos de mestre em
planejamento regional e doutor em economia urbana, planejamento regional e
áreas metropolitanas.
É,
portanto, com autoridade, que ele opina sobre a questão urbana de Brasília,
cidade desde o início envolvida em intenso debate sobre seus fundamentos e
características: capital planejada e ícone do modernismo. Embora classifique o
projeto como “genial”, Francisconi observa que a invenção de Lucio Costa
poderia ter ganho mais com o “planejamento integrado”, já em voga no final dos
anos 1950, do que com o “ultrapassado modernismo” de Le Corbusier, o pai dos
modernistas brasileiros.
De
todo modo, em entrevista à Agência Senado, Francisconi defende a preservação
dos muitos méritos da obra de Lucio Costa, mas não o congelamento de uma cidade
com potencial para oferecer ainda muito a seus moradores e lamenta o
esquecimento em torno das características exigidas de uma capital.
Agência
Senado: Como o senhor vê a trajetória de Brasília em 60
anos?
Resposta: Na origem e gênesis, capital federal de país
agrícola, com 45% de população urbana, com 60% da exportação dependendo do
café, que em 1960 buscava o desenvolvimento como sonho/solução para suas
mazelas. O plano piloto "inventado" por Lucio Costa é genial, produto
de uma criatividade original e diferenciada. Dentre outras propostas, foi a
única com a monumentalidade que reflete as expectativas de uma nação.
Curiosamente, o projeto foi inspirado no já então ultrapassado modernismo “le
corbusiano" e não no planejamento integrado que era adotado no Brasil,
como bem lembrou Jorge Wilhelm na revista Acrópole
(1961).
Quanto
à sua evolução, o plano piloto de Lucio Costa foi alterado e tornou-se o Plano
Piloto da Novacap [companhia responsável pela construção]. Hoje, a civitas [capital] é o coração de
metrópole com mais de três milhões de pessoas. A proposta de Lucio foi mantida,
mas permanece esterilizada. O Plano Piloto abriga menos de 300 mil habitantes.
Bem menos que os 500 mil previstos. As características exigidas de uma capital
nacional foram esquecidas. Ninguém mais trata disso. Sejam os preservacionistas
do patrimônio histórico, que valorizam o passado e divulgam belas fotografias;
sejam os políticos, que não investem na qualidade e funções da civitas. A rentabilidade política [votos]
do Plano Piloto é baixa.
AS: Em que
medida, o plano piloto traçado por Lúcio Costa vem sendo respeitado. O que
acabou implementado a partir do documento Brasília Revisitada, escrito pelo
próprio Lucio, em 1987?
R: O plano piloto de Lucio é mantido, mas de forma
estéril e semi-congelado. Tem sido esquecido. O que era essencial para que a civitas funcionasse foi implantado nos
anos 1960, 1970 e 1980. Em especial, as escalas habitacional e gregária. Na
escala monumental pouco foi feito além do funcionalmente necessário. A escala
bucólica tem sido usada como área de expansão urbana — sem qualificação própria
e como extensão da Esplanada. A escala não tem padrão urbanístico compatível
com os fundamentos de Lucio Costa, como se observa em seus prédios dispersos.
Os que foram projetados por Oscar Niemeyer para tribunais superiores — sem concorrência,
por decisão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
destruíram a dominância formal que Lucio destinara à Esplanada.
Prédio do Superior Tribunal de Justiça, projetado por Oscar Niemeyer e inaugurado em 1995Fonte: Agência Senado |
AS: Que
caminhos o senhor indica para a preservação do legado que é a área tombada de
Brasília? O que fazer com o restante do Distrito Federal? Como avalia certas
mudanças na função de alguns setores, como o Setor Gráfico?
R: Aqui temos várias questões. Quanto ao legado, a
resposta é manter o Plano Piloto como "cidade viva”. Cidade que atenda e
responda às demandas que surgem. Cada setor com suas características, buscando
sempre integrar as quatro escalas definidas por Lucio.
Quanto
ao restante do Distrito Federal cabe estabelecer um Plano de Desenvolvimento e
Ordenamento Territorial (PDOT), com diretrizes gerais para todo o território,
com destaque para serviços e atividades similares às "funções de interesse
comum" de regiões metropolitanas indicadas na Constituição Federal. Isso
porque o Distrito Federal tem a estrutura urbanística conurbada própria das
metrópoles. Vale destacar que os planos urbanos da maioria das cidades-satélite
são de baixa qualidade.
Quanto
às relações da metrópole com o Plano Piloto, é necessário estabelecer planos
independentes e complementares. Quanto ao restante do território caberia
elaborar PDOT para todo território do DF, com plano urbanístico próprio para
cada região administrativa.
Penso
que mudar o uso e a ocupação do Setor Gráfico foi correto e muito importante
para atualizar e fortalecer o tecido urbano. Este setor, igual ao Setor de
Garagens, o de Motéis e de Postos de Abastecimento, e a área no entorno do
Palácio do Buriti, são áreas esclerosadas. Não há gráficas ou Diário Oficial da
União (DOU) naquela área, assim como os ministérios não têm frotas para ocupar
o Setor de Garagens. Mas o esclerosamento é mantido debaixo do tapete pelo
Governdo do Distrito Federal, pelo IPHAN, pelo Instituto dos Arquitetos do
Brasil (IAB), pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) e pelo Conselho
Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA), além de outros, que optaram por
manter as coisas como estão. Desta forma, evitam avaliar, debater e decidir
sobre qual o melhor uso para cada um desses setores.
AS: Alguns
estudiosos veem a área tombada e as questões urbanísticas do DF, como um todo,
espremidas entre os interesses econômicos e imobiliários mais danosos e uma
rigidez excessiva por parte dos defensores do Plano Piloto original e do que vigia
quando da ascensão de Brasília a patrimônio da humanidade.
R: O papel do planejamento é pensar no futuro. Com
projetos e propostas concretas. No Plano Piloto, ocorre algo idêntico ao que
aconteceu com os condomínios irregulares. Como observou Ricardo Farret em seu
trabalho, havia muitos habitantes no DF que queriam morar em casas. A demanda
crescia, os urbanistas não definiam áreas para atender esta demanda e o mercado
respondeu de forma informal. Criminosa do ponto de vista legal. Tudo porque
faltou planejamento urbano que atendesse a uma demanda da população. Na área
tombada há muito saudosismo e falta planejamento orientado para as novas
demandas. Muitas reclamações corretas surgem quando o setor privado aproveita
as oportunidades e trata de ter o maior lucro possível. Mas são reclamações ex-post [depois dos fatos ocorrerem]
visto que não houve projetos e planejamento ex-ante
[antes do fato].
As
cidades são entes vivos que seguem lógicas conhecidas, as quais vão sendo
aperfeiçoadas pelo saber econômico, geográfico, urbanístico, ecológico,
sociológico, jurídico e da práxis política. Este saber fundamenta planos
diretores urbanos e ambientais, leis de ocupação e uso do solo, códigos de
obras e tudo mais. E os fundamentos de Lucio podem ser usados de forma flexível
para atender novos saberes e novos tempos. Mas quem trata disso no GDF?
Definidos
os fundamentos, tudo pode e deve ser avaliado e revisto. Na questão do
transporte público, falta separar o sistema do Plano Piloto do sistema da
metrópole. A plataforma rodoviária está sendo usada como hub da metrópole. Uma atividade que
deveria ser localizada atrás da Rodoferroviária. Falta um plano global e
qualificado para o DF, que integre modais de transporte urbano (pedestre,
bicicleta, moto, vans, onibus, VLTs e motos). O que temos hoje são concessões —
como a que está sendo feita para o VLT na W3, em trechos curtos a partir da
iniciativa de empresários — com propostas que, com freqüência, não são
prioritárias nem rentáveis. E quem ficará com a conta é o setor público.
Plataforma inferior da Rodoviária do Plano Piloto, na região central de Brasília (foto: Ana Volpe/Agência Senado)Fonte: Agência Senado |
AS: Por outro
lado, 0 senhor vê alguma viabilidade na recuperação de áreas que foram
deturpadas, como aquelas em que comerciantes fizeram "puxadinhos" ou
instalaram quiosques em total desacordo com a linha urbanística e arquitetônica
do Plano Piloto? Por que nunca vingam os planos para recuperar a rodoviária,
hoje um dos lugares mais sem conforto e barulhentos de Brasília. Prevalece a
mentalidade de que se é para a população pobre, vale qualquer coisa?
R: Há vários tipos de puxadinhos. Alguns correspondem
ao que de melhor pode ser oferecido pelo urbanismo de Lucio Costa. Outros são
deprimentes e desqualificam o tecido urbano. Mas as críticas misturam o joio
com o trigo e não levam a nada. Caberia fazer levantamento do que há para
definir padrões desejáveis, aceitáveis e inaceitáveis. Quem promoveria os
estudos? Quem elaboraria normas e padrões?
Quanto
aos quiosques, são uma "vergonha" que ocorrem porque o setor público
faz as concessões, porque aparentemente não há critérios urbanísticos e porque
quiosques oferecem serviços que planos urbanos insistem em ignorar. Como
acontece com restaurantes e serviços que proliferam na Esplanada e no Setor de
Autarquias Sul. Tarefa que cabe aos urbanistas.
AS: Também há
críticas quanto às dificuldades de envolver a sociedade no cuidado com
Brasília, na suposição de que os cidadãos, mesmo os ativistas, não têm as
qualificações técnicas para lidar com esse tipo de assunto? Se a sociedade
tivesse mais força não teria evitado, por exemplo, o aumento de gabarito de
edifícios e a mudança de destinação de algumas áreas com riscos à qualidade de
vida em Brasília?
R: Para envolver a população seria necessário criar um
processo participativo. O Poder Legislativo não quer cumprir esta tarefa. Redes
sociais mais estimulam o conflito que a convergência. Gestores da região
administrativa do Plano Piloto não têm sensibilidade para o tema. Com isso,
surge uma polarização destrutiva. Sem esquecer que, em meio aos cidadãos, há
pessoas com mais qualificação técnica que muitos dos que ocupam cargos
públicos.
A
quebra de normas por políticos e gestores públicos é frequente, quase sempre
associada a interesses marginais. Como aconteceu em Águas Claras [região
administrativa do DF]. Para combater esses crimes, há instituições, como
Ministério Público, CPIs, IAB, CAU, ONGs e outros que podem acionar a polícia e
a Justiça. Mas o processo judiciário é ineficaz e lento; as leis favorecem os
de colarinho branco; o estamento jurídico-administrativo constitui grupo que se
auto protege. Ou seja: o segmento da sociedade com capacidade e dever de agir
tem sido conivente. A chamada sociedade só entra em casos extremos, a partir de
pessoas competentes e corajosas. Como foi o caso de Vera Ramos, do Instituto
Histórico e Geográfico do DF, quando enfrentou proposta do governador para
construção [de blocos] do Minha Casa Minha vida no portal extremo oeste do Eixo
Monumental — local onde deveria haver algo inovador e compatível com o espírito
que rege a capital nacional.
Águas Claras é caracterizada pelo adensamento, em contraste com as demais regiões do DF (foto: Ana Volpe/Agência Senado)Fonte: Agência Senado |
AS: É
possível superar o conflito entre manter as premissas de Lucio Costa e adensar
certas áreas? Há os que defendem que adensar é melhor para o meio ambiente do
que abrir novas áreas para edificação.
R: O plano-piloto que Lucio Costa planejou deveria ser
bem mais denso do que é hoje. Lucio previu 500 mil pessoas e hoje temos cerca
de 300 mil. Além disso, Lucio sempre aceitou novas demandas e alterações no
projeto — desde de que compatíveis com seus fundamentos urbanísticos. Ou seja,
não há qualquer dificuldade em propor o adensamento populacional. Sem esquecer
que, para escala gregária, Lucio declarou que queria Brasilia com um centro de
cidade semelhante ao de outras grandes cidades do mundo.
O
desafio está em como acolher 40 mil pessoas a cada ano, 400 mil na década.
Adensar é a única forma de manter territórios em seu estado natural. Mas temos
"patrimonialistas" e "ambientalistas" radicais. O tempo
exige mudanças de uso e cabe urbanizar áreas com vocação urbanística e pouca
densidade. Mas o radicalismo dominante impede o planejamento sensato e estimula
a ocupação de áreas periféricas e a destruição do meio ambiente.
AS: Dois
importantes elementos da arquitetura de Brasília, a Torre de TV e a Rodoviária,
são de autoria de Lucio Costa. Como o senhor vê o estado da torre e a sua
utilização? O restaurante nunca teve continuidade, por exemplo. A feira de
artesanato, antes realizada à sombra da torre, agora está instalada
definitivamente em um terreno ao lado. Isso é adequado?
R: O projeto da Torre de TV é muito medíocre como
arquitetura. Já no restaurante, a falta de continuidade ocorre porque há baixa
demanda e/ou porque suas instalações são inadequadas, ou porque os termos de
concessão são inadequados. Talvez ocorra algo semelhante ao que se observa no
refeitório que Oscar Niemeyer projetou no teto do Teatro Nacional. Quanto à
feira de artesanato, "a emenda ficou pior que o soneto". O projeto
construído a partir de concurso público conduzido pelo IAB é inadequado quanto
ao funcionamento (conversei bastante com os usuários); é feio, sem qualidades
estéticas e também matou o "espírito" e peculiaridades da feira
antiga.
AS: Um outro
prédio, previsto no relatório do Plano Piloto, mas projetado por Oscar
Niemeyer, é o Touring Club, deturpado pela utilização, ora como repartição, ora
como igreja, e tendo na parte debaixo uma extensão da Rodoviária. O que se
poderia fazer em relação a esse belo edifício. Ele não deveria servir de
comunicação entre os setores que estão acima da Rodoviária e o Complexo
Cultural da República?
R: Este prédio, maravilhosa criação de Oscar, tem
enormes potenciais. Já tentei, décadas atrás, recuperá-lo para que fosse um
ponto de encontro debruçado sobre o trecho mais nobre do Eixo Monumental e
museu da memória do Plano Piloto. Enfrentei muito desinteresse e muita
burocracia. Para ampliar minha frustração, o prédio foi depois ocupado pela
polícia e como terminal de ônibus metropolitano. Um prédio que certamente
merece um projeto especial.
AS: A praça
entre o Museu da República e a Biblioteca Nacional, por outro lado, é toda
cimentada e esquenta muito, especialmente no verão e nos meses de maior seca.
Esse tipo de problema poderia ser solucionado sem desfigurar o arranjo
arquitetônico?
R: O problema está na concepção de Oscar. Ele repetiu
aqui o que tinha feito no Memorial da América Latina. Como disse Roland
Corbisier, grande crítico de arte deste país, Niemeyer foi um grande artista
plástico. Penso que Oscar ignora a funcionalidade e o meio ambiente, tanto no
interior e no entorno de suas obras. A implantação de jardins, fontes e
espelhos d’água poderia ser feita para criar um ambiente estética e
ambientalmente qualificado.
Museu da República e, ao fundo, à direita, a Biblioteca Nacional (foto: Geraldo Magela/Agência Senado)Fonte: Agência Senado |
AS: Está
claro que a visão idílica que Lucio Costa tinha da relação entre o carro e o
pedestre se desfez no início dos anos 1970. Em depoimento à Comissão do DF no
Senado, em 1974, ele já manifestou desagrado quanto à posição do pedestre na
cidade. E, em 1987, foi bem enfático ao dizer que estranhava o DF não ter ainda
um bom sistema de transporte público.
R: O Brasil era rural nos anos 1950. Só passou a ser
urbano no final dos anos 1960. O carro era amenidade urbana. Havia poucos, sem
congestionamentos. Digo isso porque vivi essa época. O transporte público por
bondes era usado por todos, democraticamente. A má qualidade do transporte
público hoje é produto de gestores públicos e privados que ignoram o interesse
público. Soma-se a isso, a baixa densidade e a concentração do emprego no Plano
Piloto, que geram IPK (índice passageiro por quilômetro) muito baixo. Já as
vias para pedestres são outra questão. Até hoje não tivemos urbanistas e/ou
governantes preocupados com o tema. As calçadas cariocas e paulistas, dos anos
1930 aos dias de hoje, são generosas e aconchegantes. No Plano Piloto temos
calçadas, em quadras comerciais e setores centrais, que são verdadeiros acintes
à população. Vale lembrar que para atender cadeirantes, nos anos 70 e 80 havia
rampas em meio-fios do Eixo Monumental. Tudo construído com recursos e segundo
normas da EBTU [Empresa Brasileira de Transporte Urbano]. Reformas mais
recentes destruíram as rampas. Ou seja: antes não havia legislação, mas havia
cuidados; hoje, temos legislação, que é ignorada.
AS: Como
vê, portanto, a relação de Brasília e do DF com demandas que são antigas, mas
que, afinal, configuram o novo quadro de conceitos de cidadania: preferência
para pedestres, ciclistas e usuários de transportes públicos, especialmente os
menos poluentes? Como os governos têm reagido às exigências de "direito à
cidade", mencionadas por estudiosos, como o geógrafo David Harvey?
R: Sei que nossa academia ignora urbanistas
brasileiros como Jaime Lerner, Jorge Wilhelm ou Lucio Costa e prefere seguir
autores estrangeiros como Manuel Castells, David Harvey e Bill Hillier. Por
isso, talvez, o equívoco: O Direito à
Cidade é um livro de Henry Lefebvre publicado no Brasil em 1991.
Quanto
ao conceito de "cidadania", o planejamento urbano segue tendência que
Aldo Rebelo destacou em sua recente análise do cenário político. Em ambos, os
princípios e fundamentos básicos foram substituídos por causas identitárias. No
urbanismo, orientadas para o pedestre, o ciclista, o poluidor, o meio ambiente
natural. Estes temas tornaram-se os focos da questão urbana e ocupam a
prioridade que cabe dar a temas essenciais, como o combate à injustiça social,
qualidade de vida para todos ou promoção da base social e econômica mediante
planos diretores e normas urbanas. Planos que atendam a estes objetivos poderão
garantir o “direito às cidades” para todos, mas, por hora, o que temos são
práticas urbanísticas similares às práticas políticas. Nestas, a democracia e
os direitos do povo, das ideologias de esquerda; assim como o desenvolvimentismo
e o mercado, das de direita, foram substituídos por traços e "identidades
biológicas, raça, gênero, orientação sexual”, como lembra Aldo Rebelo. No
urbanismo atual temos várias causas identitárias e grupais. São causas menores
que obscurecem grandes temas urbanos locais e nacionais.
MARIO SALIMON - CONTRAPONTO
O jornalista, músico e cineasta Mario SalimonFonte: Agência Senado |
O que se chamou Plano é, na verdade, uma diversidade
de espaços e possibilidades de vida. Nesse sentido, há coisas boas e outras nem
tanto. Nasci e cresci no interior de São Paulo, numa cidade "normal",
apertadinha, cheia de camadas acumuladas ao longo de mais de uma centena de
anos. Daí que Brasília foi um deslumbramento pra mim, com seus espaços amplos e
uma massa de verde com a qual não estava mesmo acostumado. Eu me lembro de
passar horas andando a esmo pela Asa Norte, onde inicialmente morei, explorando
canteiros centrais, balões, tesourinhas e outros elementos, ouvindo música
eletrônica no walkman. Aquilo combinava muito para quem cresceu, como eu, no
auge da era espacial. Não me lembro de ter conhecido, em minhas andanças por 13
países e explorações documentais, um modelo de adensamento mais agradável que a
Superquadra. Ademais, respira-se muito bem com este verde todo, mesmo no tempo
da seca. Contudo, há problemas, é lógico, como bem apontaram inúmeros
estudiosos, inclusive retratados no documentário Superquadras, que fiz com o
[fotógrafo] Marcelo Feijó. O preço do metro quadrado é excludente, a escala
humana, por vezes, se perde em certos deslocamentos e muito do que se previu em
termos de urbanismo acabou sendo deixado de lado, como a possibilidade de as
pessoas passarem por baixo dos blocos, visto que, hoje, muitos prédios possuem
cercas vivas ou outros expedientes que cercam os espaços antes abertos com os
pilotis. Num cômputo geral, penso, cá com minha absoluta falta de conhecimento
técnico no campo da arquitetura, que a inovação foi válida e não suplantada.
Basta olharmos para os bairros que surgiram depois na cidade!
A superquadra é uma das inovações do projeto de Lucio Costa (fotos: Ana Volpe/Agência Senado)
O cinturão verde que circunda as superquadrasFonte: Agência Senado |
Os blocos residenciais têm gabarito fixo de seis ou três andares Fonte: Agência Senado |
Paisagismo no interior das superquadras estava previsto no projeto de BrasíliaFonte: Agência Senado |
A conhecida superquadra modelo tem paisagismo de Burle Marx e edifícios projetados por Oscar NiemeyerFonte: Agência Senado |
Em termos de lacunas, não saberia afirmar se houve ou não
preparação para tanto, mas sinto que faltou um modelo de crescimento e
desenvolvimento que levasse em conta as incongruências que se vão gerando com a
dinâmica da sociedade nos aspectos ambientais, econômicos e políticos. A
impressão que tenho é que os governos perderam o controle e o trem se
descarrilhou, sendo agora impossível recuperar a verve inicial, muito marcada
pela intencionalidade, a vanguarda e o aspecto comunal.
Penso que Brasília tem lá suas esquinas, que são diferentes
daquela mais comum. Ora, o que são os quatro cantos de cada bloco? Quem seria
louco de dizer que as pessoas não se encontram e interagem em Brasília? Fiz
tantos amigos e amigas aqui que mal dou conta de ver os mais íntimos! E são
pessoas de uma qualidade incrível!
O tal distanciamento social trazido pela covid-19 nos mostra
o quanto éramos próximos de tanta gente. Ficamos doidos para ir pra rua,
encontrar colegas de trabalho, amigos de bar, artistas e mesmo as pessoas com quem
interagimos aleatoriamente graças ao permanente deslocamento que nos impõe a
vida.
O Plano Piloto deve ser preservado, mas não deve, como
modelo, direcionar absolutamente o futuro, pois há que levar em conta o fato de
que o mundo de hoje não é o mesmo daquele que pautou o projeto nos anos 1950.
Aprender com tudo que deu certo e errado no Plano e nas demais soluções, sejam
intencionais como as Superquadras, ou frutos do acaso e do descaso, como as
favelas, pode ser uma forma de avançar rumo a novos modelos melhores em termos
de qualidade de vida para todos.
Mario
Salimon
Fonte: Agência Senado CLIQUE AQUI