QUANDO E COMO RENASCEM AS POLÍTICAS URBANAS

Nas últimas décadas, dois eventos seminais recriaram as bases conceituais e práticas da gestão e do planejamento das cidades brasileiras. E a Revolução Digital tem potencial para se tornar o terceiro.

JORGE GUILHERME FRANCISCONI
Arquiteto e urbanista, PhD pela Maxwell School of Public Administration and Citizenship, Syracuse University, Syracuse, Nova York. Foi professor na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade de Brasília (UnB), Fundação Getúlio Vargas (FGV), Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM) e Universidade de Paris. Dirigiu instituições do poder executivo federal e foi consultor do Banco Mundial e do BID. Integra o Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper

Sumário O presente estudo analisa eventos que, durante os últimos sessenta anos, tiveram papel decisivo na evolução do planejamento urbano nacional. O primeiro foi a crise de 1963/1964, quando esquerda e direita promoveram, respectivamente, uma proposta de reforma urbana orientada para os aspectos sociais e outra baseada em economia de mercado.

O segundo evento se refere à democratização dos anos 80, quando os fundamentos da questão urbana passaram a ser o direito à cidade, justa e inclusiva.

A Revolução Digital em curso é um evento com enorme impacto global e, ao contrário dos anteriores, não tem matriz ideológica. Seu impacto é sobre meios e instrumentos de ação e não nos fins e objetivos a serem alcançados. Assim, deve representar um novo marco na política urbana do país, com fortalecimento da cidadania, melhores serviços e gestão eficaz, transparente e democrática.

A vida cotidiana e os ciclos de pessoas, famílias, instituições, cidades e regiões e até de países enfrentam grandes e repentinas mudanças de rumo devido a este ou aquele fato. A Constituição do Estados Unidos em 1776, a Revolução Francesa em 1789 ou a Revolução Russa de 1917 foram, como se sabe, grandes eventos da história da humanidade. Por aqui, a chegada da Corte portuguesa, em 1808, alterou os rumos do Brasil Colônia, assim como a Declaração da Independência (1822), a Proclamação da República (1889) e a Revolução de 30 alteraram procedimentos e estruturas políticas do país.

Outros tipos de eventos alteram nosso entendimento e a maneira como vemos, encaramos ou interpretamos uma mesma realidade. São eles que nos levam a "olhar com outros olhos” o mesmo fato. Como ocorreu quando Newton descobriu a Lei da Gravidade ao pensar na maçã que cai. Ou quando Descartes adotou o “cogito, ergo sum” como fundamento de seu sistema de conhecimento, Einstein criou a Teoria da Relatividade na física ou quando cada um de nós descobre fatos que se tornam eventos na medida em que levam à revisão de afetos, de comportamentos ou de princípios religiosos, filosóficos e científicos.

Eventos que alteram o rumo da história ou como olhamos e interpretamos os fatos são analisados por pensadores de diferentes áreas, e o conceito, em si, de evento, qualquer que seja seu impacto, dimensão ou tempo de gestação, é tema do filósofo esloveno Slavoj Zizek em Philosophy in Transit (2014).

Grandes eventos tornam-se seminais quando geram uma "nova visão de mundo” – e no Brasil urbano das últimas décadas houve dois eventos seminais que recriaram as bases conceituais e práticas da gestão e planejamento de cidades. Tanto a nível municipal como regional e nacional. O primeiro foi a ruptura política que resultou em regime autoritário e políticas desenvolvimentistas, no início dos anos 60. Depois houve a democratização na década de 80, evento que recuperou a democracia representativa, com descentralização administrativa e ênfase na justiça social, com novos funda- mentos sendo adotados na gestão municipal enquanto a governança urbana era reestruturada.

Nos dias de hoje, a revolução digital em marcha altera fortemente as bases da governança e os padrões de vida em cidades e metrópoles. A importância da internet na vida da população é similar à da água, da luz e do saneamento básico, ainda que a web não disponha de adequado arcabouço jurídico-administrativo e permaneça sujeita às ideologias e correntes de opinião.

A era digital afeta as atividade e o conhecimento humano de tal forma que nenhuma política, planejamento ou modelo de governança urbana, concebido na esfera governamental, pode ignorar a presença de "tecnologias de informação e comunicação" (TICs) e seu impacto seminal na gestão e na vida nas urbes. Ou seja: tudo indica que a Revolução Digital se tornou o principal evento propulsor de grandes mudanças nessas áreas.

O objetivo do presente ensaio é analisar os períodos seminais que marcam a história do planejamento urbano no país.

✴ 1963-1964– O 1º PERÍODO SEMINAL

O biênio 1963-1964 foi um período seminal por excelência do pensamento e da práxis política brasileira – incluíndo-se aí a questão urbana. O denominador comum que sustentava a utopia nacional era o "desenvolvimentismo com planejamento", que para alguns deveria reduzir as disparidades sociais e regionais; para outros fomentar a industrialização e modernização do país.

O ideário urbano de grupos moderados e maioria radical de esquerda foi sintetizado nas conclusões e propostas de Reforma Urbana aprovadas no Seminário de Quitandinha e logo integradas às Reformas de Base do Governo João Goulart, em 1963. A principal meta era promover políticas habitacionais a partir da Presidência da República, revisar os fundamentos da propriedade e uso do solo urbano, a partir de nova Constituição e Reforma Urbana inspirada naquela da Revolução Cubana. O Seminário destacou a importância dos planos diretores para disciplinar o vertiginoso desordenado crescimento das cidades e a necessidade de Plano Nacional Territorial (PNT) para o ordenamento do território nacional e redução de desigualdades e migrações interregionais.

Em contrapartida, programa desenvolvimentista liberal adotado no autoritarismo, a partir de 1964, entendeu que as cidades e o território eram componentes essenciais das políticas econômicas e adotou as diretrizes urbanas do memorando de Sandra Cavalcanti ao presidente Castelo Branco. A partir de sua experiência na política carioca – foi secretária de Serviços Sociais do Estado da Guanabara, quando promoveu a criação da Cidade de Deus, Sandra apresentou ideias que levaram ao surgimento do Banco Nacional da Habitação (BNH) e do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU) e orientaram a política intra-urbana do regime autoritário nas duas décadas seguintes. Sua proposta partia da "necessidade da agir vigorosamente junto às massas…órfãs e maguadas”(sic) e que para "devolver certa alegria" caberia "investir nos problemas de moradia.” A partir desse entendimento, anexou minuta de projeto de lei para criação do BNH e do Sistema Financeiro da Habitação – o que ocorreu naquele mesmo ano. Outro aspecto seminal da proposta era de o Banco atuar "nas áreas de saneamento básico e transportes.” E ressaltava: "Nossas cidades são um caos em matéria de serviços essenciais, Presidente. Não adianta fazer enormes conjuntos onde não houver água, luz, esgoto, polícia e transporte." Insistindo na importância de "não abandonar a população favelada", o memorando recomendava a manutenção de "Fundo de Assistência Social” e da oferta de emprego na construção civil. Outros objetivos de seu plano eram os de melhorar a qualidade das empresas médias e pequenas da construção civil e "dar melhor destino à poupança dos mais bem aquinhoados", além de a “sugestão de ser criado um Serviço para pesquisas e estudos de urbanismo e habitação, para ver se nossas cidades se organizam melhor e se nossa indústria da construção civil sai de sua fase artesanal e rudimentar.” Concluía lembrando a questão do "solo urbano” como tema que exigia atenção especial.

As propostas de Quitandinha e as de Sandra Cavalcanti estavam embasadas em crença no planeja- mento e no desenvolvimento, os quais haviam ganho força a partir do plano de “50 anos em 5” do Governo JK (1956-1960) – Brasília sendo sua “meta síntese”. Os resultados obtidos fizeram com que planejar para desenvolver se tornasse fundamento da política nacional e meta comum dos brasileiros. Todas as matizes políticas entendiam, como bem lembra Robert Daland em Brazilian Planning (1967), “o planejamento central como instrumento eficaz para encurtar o caminho a uma posição de nação moderna e poderosa, com um elevado padrão de vida. (aliado) a forte elemento nacionalista.”

A gestão de Juscelino Kubitschek havia promovido o desenvolvimento nacional em regime profundamente democrático, porém nos anos seguintes, na medida em que crescia a polarização política, aumentou a influência de extremistas de esquerda e direita, que defendiam o seu desenvolvimentismo a partir de um golpe de estado.

Essa crescente polarização no ambiente intelectual e acadêmico, assim como em partidos políticos, entidades empresariais, sindicatos, meios militares e no corpo da própria população, nos anos 50 e 60, foi reforçada pela "guerra fria" entre EUA e União Soviética. A "política de confronto" florescia globalmente, não apenas no Brasil. Na América Latina, Estados Unidos e Cuba promoviam os méritos do capitalismo avançado e do socialismo revolucionário a partir da mídia e de publicações, em atividades culturais e políticas, ou em programas de assistência técnica e econômica. Para isso os EUA tinham criado a Aliança para o Progresso enquanto o governo de Havana divulgava os resulta- dos obtidos pela Revolução Cubana.

No Brasil, o cenário sócio-territorial e econômico, as condições urbanas e o equilíbrio interregional haviam sido profundamente alterados na década de 50 e, a partir dos anos 60, a maioria da população do país vivia em cidades – embora o café fosse o principal produto de exportação. As desigualdades regionais aumentavam devido à industrialização no Sudeste, com forte movimento migratório do NE para o Sul, formado por famílias expulsas do meio rural ou em busca daquela melhor condição de vida que cidades médias, grandes e metrópoles ofereciam. A economia informal urbana e a inflação crescendo aceleradamente. 

Cidade e metrópoles inchavam devido às fortes migrações e altas taxas de natalidade, o que reforçava ainda mais as disparidades sociais brasileiras e um tipo de "apartheid". O "inchamento urbano" gerava enorme demanda por infra-estrutura e serviços para atender ao cada dia maior número de famílias abrigadas em favelas, em áreas invadidas e cabeças de porco enquanto a crise habitacional nas classes média e alta era aguçada pela legislação do inquilinato e pela alta descontrolada de preços (inflação). Um conjunto de problemas que superava a capacidade administrativa, técnica e financeira do poder público.

A polarização política cresceu em meados de 1963 e início de 1964, com esquerda e direita organizando-se para promover um golpe de estado. Em 10 de fevereiro, o líder esquerdista Miguel Arraes, governador de Pernambuco, profetizava: “Volto (para Recife) certo de que um golpe virá. De lá ou de cá, ainda não sei." A profecia cumpriu-se em 31 de março de 1964, quando lideranças militares, políticos, empresários e intelectuais de direita, com o apoio da classe média, derrubaram o governo João Goulart e assumiram o Executivo, enquanto mantinham o Poder Legislativo e o Poder Judiciário em "operação vigiada".

Ao subir ao poder, o regime autoritário adotou uma politica econômica liberal-desenvolvimentista. Implantou padrões de administração pública orientados para a meritocracia, promoveu a tecnologia e a educação. Frente aos problemas intra-urbanos, criou o BNH e o SERFHAU, como antes mencionado, e na medida em que os recursos financeiros do BNH cresceram enormemente, o banco ampliou seu leque de financiamentos e passou a ser o banco nacional de desenvolvimento urbano.

Na escala inter-urbana e regional, a inserção das politicas territoriais nas políticas econômico desenvolvimentistas foi alcançadas a partir de 1974, quando o Senado Federal aprovou politica nacional de desenvolvimento urbano (PNDU) inserida no II Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico (II PND -1975/1979). Esta sendo a única, das sete PNDUs nacionais, cujas diretrizes no território e na rede urbana do país foram indicadas em mapa do país. Para coordenar a implantação da politica urbana nacional foi criada a Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU) na Secretaria de Planejamento da Presidência da República (SEPLAN/PR. A Co- missão reunia ministérios e especialistas com notório saber, com Secretaria Executiva (SE/CNPU) composta por técnicos do IPEA e da Secretaria Geral do Ministério do Interior (MINTER).

A PNDU desenvolvimentista adotada pela CNPU (1974/1978) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU, 1979/1982) reforçou a governança metropolitana, promoveu a redução das disparidades regionais mediante investimentos federais em áreas menos desenvolvidas, criou e implantou politicas para cidades de porte médio (CPMs) e aglomerados urbanos, bem como apoiou programas do BNH e da Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU). O objetivos centrais sendo os de promover um desenvolvimento econômico e social melhor distribuídos no território, melhorias na qualidade de vida em cidades e metrópoles e uma gestão pública eficaz.

Indo além do que determinava a PNDU do II PND, a Comissão deu prioridade à formulação de legislação federal que disciplinasse o parcelamento do solo urbano (Lei 6.766/79); que definisse conceitos e fundamentos, a inter-governamentalidade e novos instrumentos para a gestão urbana (Projeto de Lei nº 775/83), além de projeto de lei regulamentando o zoneamento industrial em áreas críticas de poluição ambiental (Lei 6.803/80). Tudo isso sendo complementado pela criação de programas regionais de pós-graduação destinados a ampliar o saber urbanístico próprio de cada região do país, e por Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano (FNDU) para financiar investimentos e atividades da política urbana.

O impacto e influência dos fundamentos seminais que surgiram no biênio 1963 / 1964 perdem força a partir de meados dos anos 70 e praticamente desaparecem nas políticas urbanas dos anos 80.

✴ ANOS 80 –- O 2º PERÍODO SEMINAL O 2º Período Seminal da política urbana brasileira corresponde à redemocratização do país, na década de 1980, evento político similar ao observado em muitas nações que tinham adotado sistemas ditatoriais ou autoritários nos anos 60.

No Brasil, o regime militar estava desgastado e um período de transição passou, então, a ser conduzido pelo próprio governo e a oposição, de forma “lenta e gradual”, até ser consolidada na Constituição Federal de 1988. O legado negativo do período autoritário era pesado, claro, pelo desrespeito aos direitos da cidadania e aos fundamentos da democracia representativa e, em especial, pela prática da tortura contra oponentes políticos – para não falar das as crescentes disparidades sociais em tempos de forte crescimento econômico.

Seu legado positivo era rejeitado pelos grupos políticos emergentes, que se negavam a reconhecer méritos em um crescimento acumulado de 128,8% do PIB durante a década de 60, contra 21,1% nos anos 80, quando 50% da população dispôs de 13,74% da receita produzida e os 10% mais ricos com 48,35%. No âmbito das cidades e metrópoles, o governo havia promovido a integração de níveis governamentais e legado políticas setoriais dotadas de sistemas de investimentos, como os do citado BNH e da Caixa Econômica Federal, e por fundos de investimento, como o Fundo de Desenvolvimento de Transportes Urbanos (FDTU) e o Fundo Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Urbano (FNDU). A gestão metropolitana tinha ganho forma e conteúdo, e Planos Diretores eram adotados na gestão de cidades e metrópoles. No entanto, tais políticas haviam apenas atenuado uma crise cujos complexos e difíceis problemas permaneciam sem soluções definitivas.

A Constituição de 1988 foi elaborada em meio a pressões e demandas da sociedade civil. Seus fundamentos estavam na função social da propriedade e no direito à saúde e à habitação, dentre outros. A questão urbana ganhava nova dimensão porque municípios foram equiparados à União e aos estados; a União gozando de competências amplas, privadas, comuns e concorrentes sobre temas urbanos e a questão metropolitana entregue aos estados. Como preconizava o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU) em 1984. Aos municípios coube o planejamento e gestão sobre "assuntos de interesse local", com planos diretores que concretizassem os fundamentos seminais da função social da propriedade e o direito à cidade. Estes fundamentos foram mais tarde consolidados no Estatuto da Cidade, de 2001, enquanto metrópoles eram anarquicamente criadas por governos estaduais.

A democratização foi um evento que consolidou novos conceitos e novo modelo político-administrativo para o país, mas seu impacto nos serviços públicos foi bastante heterogêneo. Na área econômica e na política externa, por exemplo, os fundamentos e as práticas adotadas seguiram man- tidas. Já na área da Saúde, o Programa Nacional de Imunizações, de 1975, foi preservado e os próprios constituintes criaram o Sistema Único de Saúde (SUS), nos moldes do sistema inglês, enquanto na Educação houve comportamento similar, com a introdução de conceitos inspirados em valores da nova democracia.

Na questão urbana, por outro lado, os preceitos da Constituição refletiam a forte rejeição à herança deixada pelo período autoritário. Isso porque existiam maniqueístas que negavam o saber técnico, as práticas e o resultado alcançado em décadas anteriores; outros, consideravam a democratização o ponto de partida da verdadeira politica urbana do país. Tudo aquilo que ocorrera antes, como "planejamento integrado e interdisciplinar, gestão intergovernamental ou governança de metrópoles", dentre tantas práticas, foi considerado "entulho do autoritarismo,” com o uso da ciência aplicada sendo repudiado pelo Movimento Nacional da Reforma Urbana (MNRU) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT). As novas fontes de inspiração eram a Reforma Urbana de 1963, o pensamento político-filosófico gerado pelo movimento estudantil da Paris dos anos 60 e o realismo socialista da década de 50.

A utopia que orientava o MNRU era, e permanece sendo, a do "direito à cidade” – inspirado em Henry Lefvebre (pensador francês) e destinado a “gerar uma sociedade urbana promotora da emancipação do homem e de sua. capacidade criadora". O direito à cidade não consta na Constituição de 1988, contudo é princípio hegemonicamente adotada em universidades, observatórios, em muitas entidades e organismos públicos. E depois de lembrar o pensamento de Lefvebre, Lucia Bógus e Luiz César de Q. Ribeiro, do Observatório das Metrópoles esclarecem também que "No Brasil, essa utopia urbana está traduzida nos princípios da função social da cidade e da propriedade, da descentralização das políticas urbanas e na gestão democrática participativa. Ou seja, a cidade deve ser gerida pela ação direta dos seus habitantes como uma riqueza social cuja finalidade é a reprodução da vida, em contraposição à reprodução das relações sociais alienantes do capital e do Estado centralizado.”

O MNRU, que sucedeu ao Fórum Nacional de Reforma Urbana, reunia, como consta em texto do Instituto de Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/ UFRJ) sobre a questão urbana (1994,) "entidades representativas de segmentos em luta (sic), organizações não governamentais e órgãos de pesquisa" constituídas por mutuários, inquilinos, posseiros, favelados, arquitetos, geógrafos, engenheiros e advogados – dentre outros, “comprometidas com as lutas urbanas". O Movimento repudiava os conceitos de desenvolvimento urbano, gestão metropolitana e uso do solo urbano porque baseados no "discurso competente”, que Marilena Chauí definia, segundo Luiz César de Queiroz Ribeiro no I Encontro Nacional da ANPUR (1986), como aquele que "expropria as pessoas a falarem, pois faz parecer que somente aqueles que ocupam de- terminados lugares na sociedade, que manipulam certos termos, são autorizados a falar sobre a cidade.”

O planejamento era rejeitado por muitos porque, conforme declarou Demétrio Ribeiro, – presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) no período 1977-1980 –, ao “Caderno Cultura” do jornal Zero Hora (2003), "passou a época do planejamento, estamos na época do gerenciamento; passou a época da legislação, estamos na época da negociação.” Já Edgar Graeff, vice-presidente do IAB na mesma gestão e igualmente vinculado ao realismo socialista, ao avaliar o tema Arquitetura e Dependência na Revista Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/UnB (1998), indicou o planejamento integrado e equipes interdisciplinares como uma ”dependência cultural”, visto que ao “ arquiteto de talento”, “o arquiteto singular” e “o arquiteto ‘prima-dona" (sic) cabia elaborar Planos Diretores e conduzir a gestão urbana.

O Partido dos Trabalhadores, que lideranças do movimento sindical paulista e intelectuais haviam criado na fase final do autoritarismo, adotava o "orçamento participativo” para garantir o direito à cidade com gestão democrática participativa. Lançado em Porto Alegre, o orçamento participativo foi consolidado na administração petista e sua originalidade maior estava no fato de vereadores e Prefeitura entregarem o direito de decidir sobre parcela do orçamento municipal às assembleias comunitárias. Um procedimento que se alastrou pelo país e foi adotado em muitas prefeituras.

Mais tarde, o direito à cidade e à gestão urbana democrática, somados ao entendimento de que "tudo que venha do poder público é ruim", fortaleceram o "planejamento participativo.” Mais radical que o orçamento participativo, o planejamento participativo permitia que assembleias comunitárias assumissem o poder de definir parcela do conteúdo do Plano Diretor que a Câmara de Vereadores deveria aprovar e a Prefeitura implantar – com o apoio de conselhos de bairro e da cidade. A partir do Estatuto da Cidade, o planejamento participativo foi integrado ao processo de elaboração dos Planos Diretores, com “conselhos de participação e controle social voltados para uma cultura participativa de construção e implantação da politica de desenvolvimento urbano”.

Aos Planos Diretores, cuja elaboração e implantação recebeu forte apoio do Ministério das Cidades a partir de 2003, caberia cumprir o disposto na Constituição: “Promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle e uso do parcelamento e da ocupação do solo urbano” e assim definir “a função social da cidade e da propriedade urbana” Para garantir o desejado “direito à cidade”, os Planos Diretores teriam “de garantir o acesso a terra urbanizada e regularizada a todos os segmentos sociais, de garantir o direito à moradia e aos serviços urbanos a todos os cidadãos, bem como implementar uma gestão democrática e participativa.”

O princípio do "direito à cidade" reforçou as políticas urbanas orientadas para demandas de grupos ou comunidades mais vulneráveis e minoritárias, diferentemente do planejamento urbano que tratava de problemas concretos de forma integrada, incentivava inovações e orientava ações do poder público para resolver problemas atuais e propor novas condições no futuro.

A importância de Planos Diretores e os métodos e procedimentos adotados na sua elaboração foram temas de robustos programas de divulgação do Ministério das Cidades, que também apoiou a qualificação de funcionários municipais e a implantação de "processo de elaboração do Plano Diretor e fiscalização de sua implementação”, com “audiências públicas e debates com participação da população e de associações representativas de segmentos da comunidade”. Como exige, aliás. o Estatuto da Cidade. Em muitos aspectos, a iniciativa daquele Ministério replicava iniciativas do SERFHAU nos anos 60. A grande diferença estava no fundamento seminal de cada época: o desenvolvimento modernizante versus o direito à cidade.

As semelhanças estavam na contratação de empresas privadas para elaborar os Planos Diretores Urbanos (PDUs), manuais com as diferentes metodologias a serem adotadas, programas para qualificar profissionais e exigência de processo participativo para debater cada Plano. As diferenças estavam no apoio do SERFHAU às sempre renovadas metodologias desenvolvimentistas, ao Arquiteto Planejador e ao conteúdo interdisciplinar em Planos Diretores, enquanto o Ministério das Cidades reforçava substantivamente a importâncias do processo consultivo e exigia o PDU como pré-condição para repasse de recursos federais.

Os programas do Ministério fortaleceram o poder participativo e a implantação de PDUs, todavia, paradoxalmente, geraram conflitos e desilusões nos que defendiam um planejamento participativo mais influente e vigoroso. Por vezes, devido aos métodos adotados por empresas de consultoria, ou por conta de compromissos de Prefeituras, ou ainda porque o resultado de consultas às comunidades não correspondia às expectativas. Em uma avaliação do impacto do Estatuto da Cidade, em 2011, o Ministério constatava: “Em síntese, a prática do planejamento urbano participativo nos municípios brasileiros ainda requer uma mudança de cultura que supere o pragmatismo, o imediatismo e as práticas tecnocráticas na gestão urbana.”

Em relação às consultas à população, vale lembrar que o processo participativo na gestão federal surgiu na Revolução de 30. A lei das "Comissões de Planos”, que segue fundamentos da filosofia positivista e foi sancionada por Getúlio Vargas, determinava aos municípios que criassem conselhos consultivos para reunir "cidadãos brasileiros não vinculados ao serviço públicos ou a empresas subvencionadas, que deveriam colaborar gratuitamente com a administração pública”. Algumas dessas Comissões tornaram-se Comissões do Plano Diretor, as quais eram consultadas e/ou decidiam sobre questões de sua alçada e competência.

Práticas consultivas e participativas na gestão municipal, a partir da década de 50, foram consolida- das em prefeituras de muitos estados do país. Em Porto Alegre, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (1º PDDU), de 1979, foi elaborado por equipes multidisciplinares de técnicos da Prefeitura, da METROPLAN, do PROPUR/UFRGS, do IAB, da Sociedade de Engenharia, para citar algumas instituições, e submetido à Câmara Municipal. O projeto foi debatido, analisado e aprovado após nove meses de tramitação legislativa, com determinações para, como lembram Lotário Skolaude e Guilherme Socias Villela em e-mail ao autor, "(i) inclusão de 4 representantes comunitários, eleitos pelas Associações de Moradores, no Conselho do Plano Diretor, que passou a ter 21 membros; e (ii) consulta obrigatória à Associação de Moradores da respectiva área, de processos administrativos que tratassem de novos loteamentos ou de instalação de equipamentos que envolvessem interesses da respectiva comunidade, como praças, parques, escolas, supermercados, centros comer- ciais, depósitos e postos de revenda de gás, postos de abastecimento e lavagem de veículos, garagens comerciais, cemitérios e terminais e itinerários de transporte coletivo”. Tudo para fortalecer a participação da comunidade na decisão sobre investimentos e atividades que afetavam a respectiva região da cidade.

A influência e poder de Comissões do Plano Diretor no século passado e de Conselhos das Cidades, a partir de 2003, variou de município para município. A maioria das Comissões do Plano Diretor exerceu poder consultivo ou deliberativo, devidamente normatizado, junto ao Poder Executivo, enquanto Conselhos do PD e Conferências Municipais da Cidade tiveram instâncias de participação e gestão democráticas, pelo que se conhece, sem definição precisa de suas finalidades e atribuições –a maioria do Conselhos gozando de poder consultivo, poucos de poder deliberativo.

Frutos do "evento democratização”, o orçamento participativo e o planejamento participativo foram difundidos e institucionalizados e geraram resultados extremamente importantes no Brasil inteiro.

✴ 2020 – UMA NOVA SEMINALIDADE? No início do século XXI, a Revolução Digital despontou como seminalidade que muito rapidamente ganhou força – e cuja crescente importância se acelerou devido à pandemia de Covid-19. O impacto das novas tecnologias, em todo e qualquer tipo de ação humana e na natureza, está sendo – quem não vê? – avassalador. Em cidades e metrópoles, os meios digitais estão redefinindo a morfologia, a dinâmica funcional e os próprios padrões de convivência humana.

Na governança urbana surgem, a todo momento, inúmeros instrumentos digitais para aperfeiçoar a qualidade do serviços, promover uma melhor comunicação com usuários e a eficácia dos serviços públicos. A partir do uso de tais recursos no âmbito urbano nasceu o conceito de “smart city”, cuja tradução literal seria “cidade esperta” (no bom sentido) e não “cidade inteligente” (termo igualmente vago e impreciso), que o Banco Mundial (BM) entende ser “a que utiliza informação e tecnologias inovadoras para melhorar a qualidade de vida de seus cidadãos, reduzir a pobreza e impulsionar a prosperidade de seus cidadãos, e para aumentar a eficiência, e transparência de suas operações e serviços urbanos”. O BM também destaca a importância das tecnologias para o desenvolvimento urbano e nos setores sociais, de energia, transporte, água e gestão de resíduos, moradia, finanças e governo. Já o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) adota conceito menos focado no uso de novas tecnologias como instrumentos de gestão quando define a “cidade inteligente" como "aquela que coloca as pessoas no centro do desenvolvimento e as tecnologias da informação e comunicação na gestão urbana” (sic) dentro do objetivo de “ter governo efetivo que inclui o planeja- mento colaborativo e a participação cidadã”. E conclui: "Cidade Inteligentes se tornam mais inovadoras, competitivas , atraentes e resilientes, e dessa forma, melhoram vidas”.

No Brasil, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) define "cidades inteligentes" como sendo aquelas “comprometidas com o desenvolvimento urbano e a transformação digital sus- tentáveis, em seus aspectos econômico, ambiental e sociocultural, que atuam de forma planejada, inovadora, inclusiva e em rede, promovem o letramento digital, a governança e a gestão colaborativas e utilizam tecnologias para solucionar problemas concretos, criar oportunidades, oferecer serviços com eficiência, reduzir desigualdades etc." No mundo real, o uso de TICs (tecnologias de in- formação e comunicação, recorde-se) para qualificar a gestão, a práxis e a qualidade de vida urbana no Brasil cresce rapidamente, com inovações e resultados práticos sendo alcançados em inúmeras cidades. Como bons exemplos seria justo citar a gestão financeira e urbanística de Fortaleza e a municipal do SUS em Vitória.

Os conceitos e instrumentos tecnológicos do programa “cidades inteligentes” do MCTI são um dos três fundamentos da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) em elaboração na Secretaria de Mobilidade, Desenvolvimento Regional e Urbano do Ministério de Desenvolvimento Regional (SMDUR/MDR). A nova PNDU dará continuidade às políticas urbanas do período desenvolvimentista (1964-1984) e às de participativismo e direito à cidade das quatro décadas seguintes (1980-2020) – sessenta anos de escassos resultados frente às demandas de nossas precárias e socialmente injustas condições urbanas. 

A inclusão das tecnologias digitais em PNDU, destinada a ser uma "revisão" de políticas urbanas tradicionais da burocracia governamental, gera um curioso paradoxo. Primo: porque cada PNDU segue os princípios políticos e usa os instrumentos da burocracia e da gestão pública de sua época, enquanto plataformas digitais seguem leis de mercado e atendem demandas específicas de usuários – em permanente estado de renovação. Segundo: porque o uso de novas tecnologias depende de iniciativa e motivação daqueles que querem usá-las. Comportamento bem diferente do adotado na burocracia pública, que obedece ao disposto em leis, normas e hierarquias.

O paradoxo não impede que os Objetivos do Desenvolvimento Urbano Sustentável (ODUS) sejam adotados, no entanto, não mais como imposição governamental e sim como opção de consumo de governanças municipais e metropolitanas, ou de comunidades, associações e cidadãos usuários. Ressalte-se que que a Agenda Brasileira para Cidades Inteligentes define oito objetivos estratégicos para plataformas de serviços que complementam os ODUS, como "reduzir desigualdades socio- espaciais", "integrar o urbano e o digital em políticas públicas", “prover acesso equitativo à internet de qualidade às pessoas”, promover a adoção de “modelos inovadores e inclusivos de governança urbana e fortalecer o papel do poder público" na "transformação digital das cidades,” ou "fomentar o desenvolvimento econômico local”, dentre vários outros.

Os resultados já obtidos e os estudos disponíveis destacam o grande impacto das tecnologias digitais na vida urbana e alguns, mais otimistas, vislumbram uma "revolução silenciosa” autônoma, porque independe de incentivos públicos – ainda que mais eficaz se apoiada pelo poder público, e cidadã na medida em que promova melhores serviços e infraestrutura, que eficientize a gestão urbana e apoie e fortaleça os direitos dos indivíduos. Potenciais estes que levam à questão central:

As características inovadoras e o impacto da Revolução Digital têm potenciais para constituírem um “evento seminal" que irá gerar novos padrões de gestão, planejamento e práxis urbana? O cenário atual sugere que, se bem conduzida, ela será o novo fator seminal da urbanização brasileira. Novas tecnologias digitais, insista-se, já subvertem padrões tradicionais na vida e na práxis urbana, assim como promovem pequena revolução na governança das cidades. Por ora, a experiência nacional e internacional com “smart cities,” ou "cidades inteligentes", somada à disposição do MCTI e de empresas privadas, permite vislumbrar a revolução digital como vetor que renovará prá- ticas adotadas no Brasil. A utopia atual consiste em usar a Revolução Digital para reconstruir e aperfeiçoar a governança e a cidadania urbana no Brasil e garantir a "importância de politicas nacionais de desenvolvimento urbano emponderarem (empower) os responsáveis pela elaboração e execução de políticas públicas mediante adequada descentralização fiscal, política e administrativa,” como recomenda a Nova Agenda Urbana do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-HABITAT).

A seminalidade da Revolução Digital consiste em oferecer instrumentos ou meios de intervenção, diferente dos fundamentos conceituais, políticos ou ideológicos dos dois eventos seminais anteriores. Por analogia, essa diferença nos leva aos pesados telefones de mesa de décadas atrás frente aos telefones celulares de hoje. No passado, serviam apenas para discar e falar. Atualmente oferecem aplicativos para os mais diversos objetivos que se possam imaginar. Na gestão e na vida urbana, em lugar das heterogêneas normas e leis sendo elaboradas em cada cidade, haverá aplicativos modelo disponibilizados para gestores urbanos, cidadãos, empresas privadas, comunidades e outros mais que queiram participar da vida nos municípios. Entretanto, para que isso aconteça, para que prefeitos de cidades pequenas possam aperfeiçoar sua gestão e melhorar seus municípios, é necessário que o governo federal promova a elaboração de plataformas digitais com aplicativos que correspondam às metas e demandas que atendam às prioridades locais.

Para tanto será necessário criar frentes de trabalho que promovam a criação e oferta de "tipologias de plataformas” com aplicativos que garantam bons e sólidos resultados. Os objetivos podem ser os de padronizar conceitos e métodos cartográficos e estabelecer normas nacionais e/ou atender prioridades da PNDU, demandas e exigências de estados e municípios, incentivar o uso de instrumentos urbanísticos mais complexos, estimular parcerias público-privadas, combater as vulnerabilidade social, implantar os ODUS. As tipologias de cidades da PNDU, por escala ou região, poderão ser úteis na definição das tipologias de plataformas.

O impacto de tecnologias digitais na vida urbana corresponde hoje ao que se poderia chamar de “revolução passiva modernizante”, antítese da "modernização autoritária” desenvolvimentista que dominou o cenário global da década de 60 e similar àquelas do governo de JK, FHC e Lula. Uma “revolução passiva” que poderá promover a melhoria na qualidade da vida das populações das cidades, com redução de disparidades sociais, qualificação do meio ambiente e eficiência nos serviços públicos e privados. Em síntese: qualificar o espaço urbano e o meio ambiente sustentável com mais cidadania.

Brasília, fevereiro de 2021

O autor agradece às sugestões de Rinaldo Gama e de Suely Franco Netto Gonzales

FALAR COM JORGE FRANCISCONI