TEOCRACIA E URBANIZAÇÃO EM MISSÕES JESUÍTICAS
Jorge Guilherme Francisconi
INTRODUÇÃO
A relação das condições de algumas cidades com sistemas de poder, com crenças e costumes de povos em territórios de colônias espanholas na América é tema pouco explorado e importante na medida em que permite entender melhor as características de cidades do passado epara avaliar a responsabilidade da Sociedade e do Estado nas desordenadas e injustas cidades brasileiras.
As missões criadas por jesuítas e guaranis na bacia do Rio da Prata têm as condições que melhor exemplificam o impacto da ideologia sobre a gestão e a estrutura urbana. Mas para melhor entendimento do tema cabe lembrar outros exemplos em colônias espanholas na América Latina porque fazem parte de nossa história. Tudo tem início em 1481, pelo Tratado de Alcáçovas, quando o Novo Mundo, que acabava de ser descoberto e sobre o qual nada se sabia, foi entregue à Espanha e Portugal pelo Papa Sisto IV, pela bula Aεterni Regis, que dividia o mundo a partir de um paralelo na altura das ilhas Canárias. Tudo que ficava ao Norte desse paralelo pertenceria à Coroa de Castela e as terras ao Sul do paralelo definido, à Coroa de Portugal. Mas coube ao Tratado de Tordesilhas (1794) decidir que "meridiano 370 léguas a oeste de Cabo Verde" dividia “terras descobertas e por descobrir” entre Portugal e Espanha.
Nas décadas seguintes, a Coroa Portuguesa recolheu riquezas disponíveis ao longo do litoral atlântico e pouco investiu em seus territórios, enquanto a Coroa Espanhola incentivava conquistadores e religiosos a extrair riquezas, vencer e catequizar nações nativas e ocupar terreno.
Nesta conquista, os espanhóis enfrentaram poderosas cidades-estado e grandes Impérios, como o Império Asteca no México e o Império Inca na Cordilheira dos Andes, que eram governados a partir de imponentes capitais: Tenochtitlán e Cusco, respectivamente, cada uma refletindo claramente os valores socioculturais de sua nação.
Entre 1519 e 1535, os espanhóis venceram tropas de impérios e de nações pré-colombianos e saquearam as duas grandes capitais. Para isso, valeram-se da boa acolhida que recebiam, bem como de sua valentia e crueldade, do impacto causado por sua cavalaria e seus armamentos, de estratégias e da organização militar. Concluída a etapa militar, os espanhóis passaram ao desafio de ocupar e administrar territórios, evangelizar populações nativas e transferir riquezas para a Espanha. Durante o período colonial, a ocupação e urbanização do território espanhol foram orientadas pelas Leyes de las Índias e produziram as reduções (missões) jesuítico-guaranis na Bacia Platina, como povoamentos singulares, na medida em que refletiam a ideologia dominante da teocracia guaranítica. A singularidade destas missões, algumas em território brasileiro, está no fato de que só guaranis e jesuítas da Província Jesuítica do Paraguai implantaram modelo de urbanização que correspondesse integralmente aos princípios e crenças de teocracia dominante.
Em áreas hoje do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai, os jesuítas promoveram a evangelização e protegeram indígenas dos conquistadores ibéricos. Desta forma, deram continuidade às congregaciones criadas por religiosos católicos como modelos urbanos para proteger populações nativas. Ainda que incentivadas por Cortéz, desde os primeiros momentos da conquista do México, e contando com o apoio da Corte Espanhola ao longo do tempo, as congregaciones, depois reduciones e misiones tiveram pouco sucesso.
A iniciativa dos religiosos estendeu-se do México pela América do Sul e culminou na aqui denominada Governança Guaranítica que prosperou, entre 1682 e 1767, em Trinta Missões de jesuítas e guaranis, construídas às margens dos Rios Paraná, Paraguai e Uruguai. A população, no apogeu do seu século e meio de existência, chegou a cento e cinquenta mil índios e quatrocentos e cinquenta e sete jesuítas, que viviam em pequenos povoamentos e cujo modelo de urbanização correspondia à originalidade da organização social e à teocracia da governança adotada.
Este importante capitulo do urbanismo latino-americano é pouco conhecido no Brasil, ainda que ruínas de missões da aqui denominada nação guaranítica tenham sido tombadas pelo IPHAN e façam parte do patrimônio cultural da UNESCO. Ruínas de prédios, assim como documentos e testemunhos disponíveis, têm sido pouco valorizadas por professores, estudantes e historiadores brasileiros, mesmo depois de intenso esforço de recuperação durante a primeira metade do século XX, quando Lúcio Costa trabalhou para promover o reconhecimento e tombamento de ruínas dos Sete Povos das Missões.
A importância da Religião Católica na cultura espanhola exigia o destaque das igrejas, tanto na forma como no perfil das cidades. Para isso, a Igreja deveria ser construída em local que realçasse sua beleza e importância, livre e independente de outras edificações. Em cidades grandes, com o envolvimento da “Praça Maior” e, em pueblos, onde pudesse ser vista de todas as partes.
URBANIZAÇÃO E EVANGELIZAÇÃO
A partir da descoberta da América, os espanhóis trataram de conquistar territórios para obter riquezas e converter povos nativos ao cristianismo. Enquanto conquistadores, cruelmente, submetiam populações nativas e se apossavam de suas riquezas, a Coroa Espanhola considerava a salvação das almas e conversão de indígenas ao Catolicismo como razões importantes para a ocupação do Novo Continente. Esta contraditória motivação explica as ações de Cortéz na vitoriosa marcha do litoral até o Vale do México, quando transformou templos pagãos de nações nativas em igrejas católicas e promovia suas conversões à fé cristã, com submissão aos Reis Católicos de Espanha.
Após haver fundado Veracruz [1524] para ter autonomia na conquista do México, e tendo vencido o Império Asteca, Cortéz recebeu o apoio dos Reis Católicos para a evangelização dos nativos, com a chegada de doze frades Franciscanos (1524) (doze corresponde ao número de apóstolos), cuja missão era criar uma igreja pura, com a simplicidade da Igreja em suas origens. Vieram, em seguida, doze Dominicanos [1526], mais Agostinianos [1533] e Jesuítas, que enfrentaram um cenário de guerras, epidemias de varíola e dispersão de indígenas em grandes territórios. Para enfrentar o gigantesco desafio de converter nações com idiomas e culturas próprias, os religiosos estudaram e preservaram hábitos e costumes enquanto traduziam livros religiosos para as línguas nativas e lutavam bravamente para defendê-los da cupidez, escravidão e crueldade espanhola.
Congregaciones e Reducciones
Para cumprir sua missão de evangelização, os religiosos trataram de reunir os povos nativos em congregaciones (congregações), povoados cuja população adotava costumes civilizados e crenças cristãs. Sob a orientação do clérigo humanista Vasco de Quiroga, a primeira congregación foi construída próxima à Cidade do México (1532) e a segunda, em Pátzcuaro, Michoacán (1538). O projeto destas cidades-modelo parece ter sido inspirado na sociedade ideal de Thomas Morus em Utopia, com habitantes adotando sistema comunitário de trabalho, elegendo representantes para o cabildo e administrando seus hospitais e escolas. Os religiosos promoviam a educação, melhoria de técnicas de cultivo agrícola e uso de tecnologias como canais de irrigação, construção de aquedutos e redução da aridez da terra. Mais tarde, introduziram o cultivo de cereais e a pecuária.
A experiência das congregaciones difundiu-se pela América Espanhola e, por conta dos resultados obtidos, foi defendida pelos que consideravam os indígenas como seres humanos iguais ao conquistador branco, mas atacada pelos que entendiam serem os indígenas raça de natureza inferior. A Coroa Espanhola e muitos religiosos defendiam o primeiro entendimento; conquistadores, comerciantes, latifundiários e alguns religiosos defendiam o segundo entendimento. A importância do tema levou a Coroa Espanhola a promover debates, em Valladolid, para definir a condição dos indígenas para ter autonomia segundo critérios propostos por Aristóteles.
Os debates entre Las Casas, ferrenho defensor dos nativos, e Sepúlveda, seu antagonista, na Universidade de Salamanca , não foram conclusivos. As duas facções mantiveram suas opiniões e as encomiendas criadas pela Coroa Espanhola para que espanhóis empregassem, defendessem e convertessem nativos ao catolicismo, foram mantidas. Na prática, persistiram a crueldade, despotismo e escravidão de indígenas, sempre em conflito com os religiosos que iam, de aldeia em aldeia, para atos religiosos.
Entre a população nativa, a aceitação das congregaciones foi menor em Yucatán e maior no México. Quando chegaram ao Peru (1560), passaram a ser chamadas de reducciones (reduções) e, levadas ao Paraguai (1568), prosperaram como instrumento de jesuítas para proteção e conversão de indígenas ao catolicismo e para integração da cultura europeia com a indígena. O sacerdote jesuíta Antonio Montoya (1585-1652), notável pelo trabalho missionário e pelo dicionário da língua guarani, relata:
“...llamamos reducciones a los pueblos de los índios, que vivendo a su antigua usanza en montes, sierras y valles, en escondidos arroios, en três, o quatro o seis casas solas, separados a légua, dos, três y más unos de los otros, los redujo la diligencia de los padres a poblaciones grandes y a vida politica y humana, a beneficiar el algodón para con que se vistan, porque comúnmente vivían en desnudez, aún sin cobrir lo que la naturaleza oculto.
No Vice Reino do Peru, a partir de 1567, os jesuítas também adotaram "um tipo de ação evangelizadora que se denominava missão, ou seja, um avanço sobre as zonas indígenas não catequizadas ou sobre centros urbanos espanhóis, onde por um certo tempo se pregava e em seguida se retornava ao colégio ou residência central”. Este procedimento não teve maior sucesso e foi abandonado, com o termo missão sendo adotado como sinônimo de redução.
No Brasil, a partir do Padre Manuel da Nóbrega, os jesuítas implantaram reduções em todo país, as quais desapareceram após a expulsão desses religiosos, sem alcançar padrões e resultados comparáveis ao do sistema de missões implantado por jesuítas espanhóis nas bacias dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai, que compõem a bacia do Rio da Prata. Os escassos resultados alcançados no Brasil podem ser explicados por entendimentos e ações de jesuítas portugueses, bem como pelo comportamento de portugueses e espanhóis frente a indígenas e africanos. Em colônias espanholas, a segregação racial era reforçada pela tradição e leyes da coroa espanhola que exigiam limpieza de sangre, o que consolidou uma discriminação social bem diferente da miscigenação de europeus com nativos e africanos no Brasil. Durante alguns séculos do período colonial, a segregação racial entre os espanhóis de sangue puro, criollos, nativos, judeus e africanos influenciou a urbanização e as normas administrativas promulgadas pela monarquia espanhola. Como exemplo que merece destaque está a criação de dois cabildos na mesma cidade: o primeiro cabildo (câmara municipal) reunia representantes de áreas ocupadas por brancos e o outro cabildo, os representantes de áreas ocupadas por outras etnias, na sua maioria, nativas. O modelo adotado preservava a limpieza de sangre exigida pelas cortes espanholas bem como reconhecia a capacidade cultural de nativos e impedia sua exploração por espanhóis. Para Williamson, este modelo de gestão urbana resultava na criação de "República dos Espanhóis separada da República dos Índios.”
Os Jesuítas
Na convivência com nativos, os jesuítas praticavam o cristianismo renascentista, ao adotar o conceito de acomodação (accomodatio). Graças a esse conceito é que eles atenderam às necessidades locais de evangelização e, segundo as circunstâncias, utilizaram imagens da fé alheia tidas como comuns ao Catolicismo. Desta forma moldavam-se, externamente, a qualquer forma de culto estranho, visto que ao valorizar a "fé implícita” estavam atendendo à "verdadeira fé”. O conceito de acomodação era produto do humanismo renascentista, diferente do adotado no período medieval, e contrariava decisões do Concílio de Trento [1545 a 1563], que exigira fé declarada e batismo para alcançar a salvação eterna. Esta divergência religiosa foi depois usada para justificar a expulsão de jesuítas da América e da Península Ibérica.
Em reduções e missões jesuíticas espanholas nas Américas, o principio da acomodação foi usado com o objetivo de criar uma sociedade que integrasse "benefícios e qualidades da sociedade cristã europeia, mas isenta dos seus vícios e maldades.” Para isso, os jesuítas criaram povoados do México à Bacia Platina e desenvolveram técnicas de contato, atuação junto aos índios e aprendizado de suas línguas, crenças e costumes. O resultado foram os povoados, conhecidos como reducciones ou missiones, que eram comunidades regidas por sistema administrativo, econômico, cultural e urbano próprio e diferenciado, pelos quais índios tinham crenças e costumes adaptados aos ensinamentos da fé cristã. Missões jesuítico-guaranis na Bacia Platina alcançaram estabilidade econômica, social e administrativa, além de belos resultados na produção artística. Para isso foram essenciais os fundamentos religiosos adotados pela Ordem dos Jesuítas no trato de crenças nativas e, acima de tudo, a autonomia concedida à Província Jesuítica do Paraguai na criação de ordenamento teocrático com guaranis neste território.
A Primeira Redução (Missão) Jesuítica na América do Sul
As missões jesuíticas surgiram em 1577, quando a Ordem aceitou convite para evangelizar índios Aimarás e criou a redução de Juli (Fig.1), às margens do Lago Titicaca no Peru, sustentada por procedimentos administrativos, econômicos e sociais próximos aos estabelecidos pelo Império Inca. O modelo urbano adotado nesta missão jesuítica, por outro lado, obedecia às Ordenações da Coroa Espanhola para o Novo Mundo e às normas das Leis das Índias, tanto para cidades maiores, como Caracas (Fig.2), como para aldeamentos e pueblos de índios, com sistema viário reticulado envolvendo igreja e praça central, o templo dominando a paisagem e a vida do pequeno povoado. O modelo foi reproduzido a partir do Paraguai e gradualmente modificado nas reduciones da bacia platina, até chegar no formato que se tornou símbolo de configuração urbanística missioneira e da ordem teocrática da Província Jesuítica do Paraguai.
Fig 1 - Plano Urbano da Redução de Juli, Peru
Fig 2 - Plano Urbano de Caracas, Venezuela
No Paraguai, as reduciones jesuíticas chegaram para promover a ocupação do território, a evangelização de indígenas e sua inserção no processo produtivo (1585), e foram expandidas na República del Guaira (Fig. 3), sempre atacadas por bandeirantes caçadores de índios e de espanhóis encomenderos.
As condições dos jesuítas para alcançar resultados melhoraram quando, em 1604, a Província Jesuítica do Paraguai ficou independente das Províncias do Peru e Brasil. Liderados pelo Padre Diego de Torres que, por conhecer insucessos de congregaciones e reducciones, bem como a crueldade ibérica em encomiendas criadas para proteção de indígenas, tratou de assegurar condições de trabalho para os jesuítas. O requerimento do Padre Torres, aprovado pelo Governador do Paraguai e pelo Conselho das Índias, concedia autonomia aos jesuítas para que dispusessem de condições que assegurassem “princípios básicos para ação missionária que seria realizada, os quais incluíam a economia e liberdade do índios” e, para que estivessem "livres do serviço pessoal e encomendados diretamente ao Rei.”
A partir da autonomia e poderes concedidos pelo Governador e pela Coroa Ibérica, os jesuítas implantaram inúmeras missiones no Paraguai e, em especial na República del Guaíra, território entre o Rio Paraguai e linha imaginária do Tratado de Tordesilhas. Os jesuítas chegaram em 1588, alcançaram o apogeu entre 1622 - 1628 e partiram em 1630. Durante o apogeu espanhol, em Guaíra havia várias cidades e onze reduções jesuíticas - sempre sujeitas a incursões paulistas. A partir de 1629, os bandeirantes passaram ao ataque sistemático e, liderados por Antonio Raposo Tavares, capturaram centenas de índios, que venderam a usineiros nordestinos, e se disseram defensores de Portugal.
Fig. 3 - República del Guaira
Após dois anos de lutas restavam apenas duas missões, o que levou o Padre Montoya a comandar a migração de 12 mil indígenas em 700 embarcações rumo ao sul, a maioria pelo Rio Paraguai. Ao final, apenas um terço dos migrantes chegou às margens desse rio e muitos deles buscaram a região dos rios Paraná e Uruguai. Nas margens deste último é que o Padre Roque Gonzales criou a redução de Nossa Senhora da Conceição (Concepción de la Sierra), em 1619, e depois, na margem esquerda, as de São Nicolau (1626) e de Nossa Senhora da Candelária (1627).
Ainda que distantes de Piratininga, as reduções jesuíticas continuaram sendo destruídas, na década de 1630, por bandeiras que chegavam pelo planalto central para capturar indígenas. Este ciclo terminou quando a corte espanhola concedeu aos guaranis o direito de se defenderem com arcabuzes. Devidamente treinados e comandados por jesuítas, os índios guaranis derrotaram a bandeira de Jerônimo Pedroso de Barros, apoiada por índios tupis, na batalha fluvial de M’Bororé (1641). Esta vitória de tropas missionárias sobre quase dois mil atacantes encerrou as investidas de bandeirantes genocidas e predadores de índios, que haviam deixado reduções em ruínas.
Em novo ciclo, os bandeirantes partiram em busca de novas áreas e de pedras preciosas enquanto jesuítas espanhóis retiravam-se para margem direita do Rio Uruguai. O sistema missioneiro em território brasileiro desapareceu a partir de 1640, na medida em que padres e índios guaranis migraram e consolidaram o sistema jesuítico guarani em território espanhol, em conformidade com o Tratado de Tordesilhas, que voltara a ser respeitado depois da separação das Coroas de Espanha e Portugal.
Bandeirantes e jesuítas deixaram, como herança, reduções em ruínas e gado europeu solto nos campos. Ao longo das décadas seguintes, houve a multiplicação deste gado e o avanço de portugueses rumo ao sul. O gado, espalhado pela Vacaria do Mar (pampa do Rio Grande do Sul e República do Uruguai) e pela Vacaria do Pinhal (planalto central), tornou-se incalculável patrimônio econômico para portugueses que avançavam pelo litoral e pelo interior do continente, colonizando e criando postos militares.
A riqueza oferecida pelo gado na Vacaria do Mar começou a ser explorada por espanhóis em 1667 e foi fundamental para o sucesso da Colônia do Sacramento, fundada por portugueses, em 1680, frente ao posto militar de Buenos Aires, para garantir os direitos de Portugal até o Rio da Prata (Fig. 4).
Frente às iniciativas portuguesas no tenso e complexo tabuleiro geoeconômico da região, os espanhóis anistiaram as Missões dos tributos que deviam à Coroa e conferiram “às Missões de Guaranis a função de defender as fronteiras meridionais" , fundando assim as Guarnições de Fronteira (1649). Algumas décadas depois, jesuítas espanhóis retornaram à margem oriental do Rio Uruguai (1680) e fundaram os Sete Povos das Missões, que integravam os Trinta Povos de Governança Guaranítica que, distribuídos pelo território da bacia do Rio da Prata, perduraram por século e meio (1680 / 1778).
O apogeu da Governança Guaranítica corresponde ao período de maior prosperidade dos Trinta Povos das Missões, entre 1682 e 1767. Em décadas anteriores e depois do insucesso em Guaíra, os jesuítas haviam migrado rumo ao sul, consolidaram seu projeto evangelizador e civilizatório e, até 1640, ocuparam a margem direita do Rio Uruguai com missões de índios guaranis. Depois consolidaram a Nação Guaranítica no extenso território assinalado na Figura 4.
Fig. 4 – Missões Jesuíticas no Rio da Prata – 1570/1726
Neste período, a Colônia do Sacramento prosperou graças ao comércio e indústria gerados pela pecuária das vacarias, por seu sucesso político e militar, bem como pela venda e contrabando (apoiado por ingleses) de produtos coloniais. Sempre envolvida por pilhagens, batalhas e escaramuças de portugueses e índios minuanos com espanhóis e guerreiros guaranis de de missões jesuítas, Colônia foi entregue aos espanhóis em 1777.
A partir de 1682, jesuítas e guaranis retornaram ao território brasileiro para dar início aos Sete Povos das Missões e organizar a ocupação do território com pontes, estradas e estâncias para agricultura e pecuária. As sete missões foram São Francisco de Borja (1682); São Nicolau (1687); São Luiz Gonzaga (1687); São Miguel Arcanjo (1687) como capital; São Lourenço Mártir (1690); São João Batista (1697) e Santo Ângelo Custódio (1706), em meio a povoados e fazendas que chegavam na Lagoa Mirim e ao Planalto Central, onde criaram a Vacaria dos Pinhais (1709), no município de Vacaria.
As estâncias, que também deveriam gerar a renda complementar necessária para o pagamento de impostos, eram distantes da missão-sede. A estância de São Miguel, em Santa Tecla, no atual município de Bagé, distava quase 600 km. As estâncias eram destinadas à criação de gado, cavalos, ovelhas, cabras, porcos, galinhas, os índios aproveitando o leite, couro e sebo, sendo este último muito cotado na época.
A Sociedade Jesuítico-Guarani
A sociedade teocrática jesuítico-guarani foi implantada na bacia platina e reuniu mais de trinta povoados (missões) articulados por estradas, pontes e ligações fluviais, e apoiados por estâncias de gado e lavouras dotadas de tecnologias avançadas para época.
Em seu apogeu, as missões ocuparam territórios de forma planejada, com população estimada em mais de cento e cinquenta mil índios e quatrocentos e cinqüenta e sete jesuítas e constituíram, segundo Darcy Ribeiro, "a mais bem sucedida experiência da Igreja Católica para cristianizar e assegurar refúgio às populações indígenas ameaçadas de absorção ou escravização pelos (…) descendentes de povoadores europeus (e) para organizá-las em novas bases, capazes de garantir sua subsistência e seu progresso.” Para Moysés Vellinho, tratou-se de “imponente organização social, religiosa e militar que os jesuítas ergueram, corajosa e abnegadamente”, com funcionamento e estrutura de Império Teocrático vassalo dos Reis Católicos da Espanha.
Em cada missão havia dois padres, um cura e um auxiliar, para coordenar todas as atividades. Para garantir a aculturação de populações indígenas, a língua nativa (guarani) foi adotada, inclusive nas pregações de jesuítas. O trabalho evangelizador era feito por meio de missas, batismos, músicas, teatro e pela liturgia católica, com jesuítas combatendo alguns costumes, como a poligamia e a antropofagia, mas preservando todos aqueles que não consideravam prejudiciais ao trabalho missionário. A tarefa dos jesuítas era facilitada pelas crenças religiosas de guaranis da etnia tapes, que acreditavam em deuses regendo cada aspecto da natureza, e pelo fato de os guaranis praticarem uma agricultura mais sedentária. Por outro lado, o sistema comunitário adotado por guaranis dificultou a implantação da sociedade idealizada pelos jesuítas, baseada em ambiente de trocas culturais.
A administração era exclusivamente indígena, respeitada a hierarquia de cada tribo, e liderada por caciques geralmente hereditários. Anualmente eram eleitos os membros de Conselho, que corresponderia ao cabildo ou atual Câmara de Vereadores, assim como os administradores, fiscais e administradores de bairros.
A justiça era conduzida pelos jesuítas, com consulta ao cacique, e as punições, aplicadas por indígenas, numa sociedade em que poucos eram os crimes e leves os castigos. Membros de famílias da elite indígena recebiam tratamento diferenciado em cerimonias religiosas e atividades administrativas, na localização da casa na missão e na educação concedida aos jovens. Filhos de caciques tinham prioridade na educação e aprendizado de línguas, bem como para viajar e conhecer cidades de colônias espanholas.
Os guaranis das missões eram súditos do rei espanhol, pagavam impostos e prestavam serviços à Coroa, construíam fortificações e lutavam pela defesa do território, sempre subordinados à rigorosa fiscalização dos governos de Assunção e Buenos Aires.
Em obediência às leis espanholas, os índios trabalhavam quatro dias na semana no ABÃ-BAÉ, ou "Terra do Homem”, que eram lotes particulares de terra entregues a cada família e destinados ao sustento da família. Outros dois dias eram dedicados ao TUPÃ-BAÉ, a "Terra de Deus", terras coletivas que produziam alimentos para quem trabalhava no campo, sendo parte da produção trocada por mercadorias não produzidas nas reduções.
As estâncias eram de propriedade da comunidade, mas bois e instrumentos utilizados na agricultura eram sempre de TUPÃ-BAÉ, com a criação de gado sendo feita em estâncias longe das missões.
Nas estâncias, trabalhava-se com cuidado especial para garantir a alimentação dos índios mediante o cultivo de cereais, milho, mandioca, abóbora, algodão, cana, hortaliças, árvores frutíferas e erva-mate, além da exploração da pecuária e extração de vegetais das florestas. A erva-mate era exportada, enriquecendo as missões.
Os indígenas construíam igrejas e outras edificações, bem como produziam tecidos, objetos de couro, esculturas, instrumentos musicais e extraíam erva-mate, ferro e madeira. Em meados dos anos seiscentos, muitas missões já eram prósperas o bastante para desenvolver ativo comércio com cidades e províncias próximas, chegando a exportar muitos produtos, como instrumentos musicais e esculturas, com lucros para a Europa. O transporte era feito por barca que, uma vez por ano, levava para Assunção e Buenos Aires o excedente comercializado pelos jesuítas.
O sucesso de várias missões foi notável, na medida em que seu nível de vida superava o de colonos, assentados em vilas e cidades vizinhas, porque adotavam estrutura administrativa e econômica bem mais eficiente e mais humana, com tecnologias mais avançadas de produção urbana e rural. Apesar disso, o sistema missioneiro enfrentou dificuldades e imprevistos, como o declínio na taxa de natalidade dos índios, o que levou os jesuítas a exigir novos comportamentos em cada comunidade.
Configuração Urbanística Missioneira
Os Trinta Povos das Missões prosperaram graças ao trabalho coletivo de índios coordenados por jesuítas enquanto as missões adotavam a chamada configuração urbanística missioneira, que destacava prédios, espaços públicos e atividades segundo a hierarquia e os fundamentos religiosos, políticos e de vivência comunitária adotados em cada missão jesuítica. A hierarquia morfológica e territorial de prédios e espaços públicos legitimava a ordem religiosa, a estrutura política, produtiva, social e o padrão cultural adotado por jesuítas e guaranis.
Lúcio Costa resumiu o ordenamento urbanístico de cada povo, isto é, cada burgo, quando distinguiu o grande conjunto arquitetônico, com praça cercada por longos prédios e com vias e prédios destinadas às habitações. O “grande conjunto arquitectónico”, que abrigava atividades fundamentais da teocracia, da comunidade e da produtividade de cada missão, era:
- "constituído pela igreja que compunha com a residência dos padres, o asilo, a enfermaria, as aulas, as oficinas, as cocheiras, etc, - e também com o cemitério” e,
- "servido por vários pátios, tudo murado, muros que continuavam para os fundos das construções, abraçando enorme área ocupada pelo pomar e pela horta, ou seja, a quinta dos padres.”
Complementando o conjunto havia, frente à igreja, grande terreiro ou praça cercada por numerosos prédios e habitações ocupando a área restante de cada burgo.
Esta disposição urbanística original e inovadora não adotava os fundamentos exigidos pelas Leyes das Índias, como se verifica ao comparar plantas urbanas de Juli, no Peru e Caracas na Venezuela (Figs.1 e 2) com a de São João Batista, nas Missões.
A característica urbanística mais importante das missões guaraníticas correspondia ao sistema teocrático e consistia na distribuição das atividades pelo povoamento, que era dividido em duas grandes unidades morfológicas e funcionais, uma em frente a outra, com via estruturada separando as duas. A primeira unidade, chamada por Lucio Costa de grande conjunto arquitetônico, destinava-se e simbolizava o poder maior do estado teocrático, com Igreja que se destacasse na paisagem, e cercada por prédios que serviam ao caráter comunitário da sociedade jesuítico-guarani de cada missão, tanto de natureza social (educação e saúde) como econômica (produção de bens básicos). A segunda unidade urbana era destinada às atividades próprias da população guarani, com o Cabildo junto à praça, vias estruturadoras e secundárias e prédios habitacionais com características próprias e diferenciadas.
As duas unidades eram separadas por via fronteira ao grande conjunto, cabendo ao espaço da grande praça a função de as integrar. Como herança da cultura europeia e incaica, a praça era o local de espetáculos religiosos e culturais, atividades esportivas, militares e espaço de convivência e de manifestações da comunidade. Sua singularidade está no fato de que não correspondia à Ágora da democracia ateniense, nem às praças de comércio da Roma Antiga ou de cidades medievais. Não era tampouco a praça renascentista ou barroca, onde, em lugar de ser "espaço urbano que por mais de 2.000 anos havia sido um atributo da arquitetura”, agora “competia para ser independente", com os “ornamentos da praça sendo mais importante que os ornamentos de prédios no seu entorno.” (tradução livre)
Nas missões jesuíticas, a praça ressaltava a monumentalidade e beleza da Igreja como símbolo da religião e do poder teocrático. Na praça aconteciam cerimônias e cânticos religiosos que complementavam as funções do grande conjunto.
Por outro lado, no entorno da praça estava o poder laico dos guaranis e para ela convergiam atividades comunitárias e a convivência da população guarani que vivia fora do grande conjunto.
A originalidade da configuração urbanística missioneira está na rigidez do modelo urbanístico adotado para atender a fundamentos da governança teocrática de cada missão (Fig. 5). Suas características urbanísticas e arquitetônicas manifestavam-se a partir da:
· disposição frontal e bem definida do território de cada setor urbano, com funções e morfologia próprias diferenciando o grande conjunto dos prédios habitacionais;
· dominância morfológica do grande conjunto arquitetônico;
· a praça como espaço de articulação e integração das atividades dos dois setores de cada missão;
· homogeneidade de prédios habitacionais, multiplicados na medida em que crescia a população de cada missão, sem oferecimento de outras atividades comuns nas áreas para função residencial;
· rebatimento do ordenamento politico-religioso e dos valores da teocracia na disposição funcional e morfológica entre os dois setores urbanos, bem como na disposição interna de prédios em cada sector;
· natureza centrípeta da disposição viária das missões;
· a praça não ocupar o centro geográfico do povoamento nem integrar o icônico conjunto arquitetônico construído num extremo da missão, enquanto ruas e prédios habitacionais mais discretos atendiam às demandem e jesuítas por monogamia, vida familiar própria e bons costumes, bem como aos hábitos e preceitos de vida próprios dos guaranis.
· padronização das construções com habitações familiares que correspondiam ao caráter comunitário e igualitário adotado, e com habitações cujo interior atendia ao primitivo cotidiano das populações indígenas.
· planejamento territorial que limitava o tamanho dos povoamentos, previa a fundação de novas missões a partir da migração da população optante, e que cada missão fosse apoiada por estâncias e plantações de erva-mate distantes da sede.
· construção de infraestrutura regional de vias terrestres e fluviais, pontes, aquedutos e fontes de água.
Fig. 5 – Configuração urbanística de missões jesuítico-guaranis
A singular disposição urbanística adotada pela governança guaranítica está presente nas cerca de 30 ruínas catalogadas e localizadas na Argentina (15), Brasil (7) e Paraguai (8). Destas, sete foram declaradas Patrimônio Cultural Mundial pela Unesco, sendo uma no Brasil (São Miguel das Missões), quatro na Argentina (San Ignacio Miní, Santa Ana, Nuestra Señora de Loreto e Santa María la Mayor ) e duas no Paraguai (La Santísima Trinidad de Paraná e Jesús de Tavarangue). São Miguel das Missões, em terra gaúcha, integra o patrimônio histórico nacional protegido pelo IPHAN.
Características das Missões Jesuíticas
Cada missão, parodiando Moholy-Nagy, era prova viva de que cidades não apenas retratam, mas ampliam as características básicas de sua sociedade. Desde a fundação, cada missão jesuítica adotava o mesmo ordenamento urbanístico básico, com serviços para até sete mil habitantes. Novas missões surgiam quando o limite populacional era alcançado. Antes da fundação, os jesuítas cuidavam para que o sítio escolhido estivesse em lugar alto, de fácil defesa, com matas e água abundante, com alguns índios iniciando plantações e construções provisórias. Depois, com lavouras já produzindo, chegavam famílias para erguerem prédios e casas projetadas pelos padres.
As missões eram povoações que cresciam em quarteirões regulares, conforme os fundamentos de arquitetura e urbanismo idealizados pelo Padre Roque Gonzáles e segundo as peculiaridades de cada missão, como se observa ao comparar imagens de São João Batista com São Miguel Arcanjo (Figs. 6 e 7).
Figura 6 - Missão de São João Batista
Figura 7 - Missão de São Miguel Arcanjo
A Igreja central era o TUPÃ-OGA, a CASA de DEUS, e cada povo esmerava-se para fazê-lo mais importante. A Igreja sintetizava os valores e a riqueza de cada comunidade, com fachadas e interiores ricamente ornamentados e grandes cúpulas, no melhor estilo barroco da Europa na época. As fachadas seguiam o que foi mais tarde chamado de estilo Missioneiro, inspirado na Igreja de Gesù dos jesuítas em Roma e, no interior destes templos eram conduzidos os rituais católicos, com músicas solenes produzidas por corais nativos, órgãos e outros instrumentos.
A casa grande do conjunto, COTIAGUAÇU, abrigava viúvas, mulheres sozinhas e órfãos, amparados pelas famílias, e sempre numerosos, devido às constantes guerras com portugueses. A enfermaria, para doentes em estado mais grave ou com perigo de contágio, ficava ao lado do cemitério, enquanto doentes comuns ficavam nas próprias casas, onde enfermeiros os visitavam duas vezes ao dia. Indios eram enterrados no cemitério ao lado da igreja; jesuítas, junto ao altar mór.
No outro lado da igreja, ficava o claustro e a casa dos padres. Depois havia um pátio cercado por alpendre e salas de ensino, oficinas e depósitos. No colégio, só estudavam meninos filhos de caciques e administradores, enquanto meninas aprendiam prendas domésticas. Muros de pedra cercavam a quinta dos padres com pomares, hortas e jardins.
Nas oficinas trabalhavam artistas com seus instrumentos e com teares, cuja matéria prima era a lã e o algodão. Todos tinham funções, inclusive velhas e crianças.
Se a Igreja era sempre o prédio mais importante, a praça era o coração de cada missão. Na rua principal de acesso à praça e à igreja, havia procissões, mas só na grande praça havia teatro e encenações religiosas (autos sacros), jogos, danças e exercícios militares. Ali tocava a orquestra nos dias de festa, desfilavam guerreiros armados uma vez por mês, havia jogos de bola ou tejo. No entorno da praça estava o Cabildo ou Prefeitura Municipal, casas de caciques, casas públicas e particulares, e depósitos de mantimentos e d'armas.
As habitações ficavam ao longo de ruas perpendiculares, com casas particulares para cada “grande família", segundo a tradição indígena. As edificações consistiam em longos pavilhões de casas geminadas, com cada habitação destinada a uma família para atender aos princípios religiosos e evitar a promiscuidade existente nas tabas indígenas. Os pavilhões habitacionais eram cercados por varandas para proteger a população contra as intempéries do tempo.
Nas casas não havia janelas, mas 6 a 8 portas de cada lado, as quais correspondiam ao número de quartos necessários para cada família. O fogo no chão servia para cozinhar e aquecer o interior das casas, como antes em ocas indígenas. As divisões internas eram feitas com couro ou esteiras, os moradores dormiam em redes de algodão e, quando em casa, sentavam em bancos, nas redes ou nos calcanhares, acocorados, e no chão. As moradias regularmente distribuídas ao longo das ruas foram, de início, construídas com barro e palha e depois com pedra e telhas, e dotadas de várias salas e chaminés, com alterações segundo a época e região.
Na periferia dos povoados localizavam-se as fontes de pedra, com água para abastecer a população, lavar roupa e tomar banho. Também havia currais e tambos, o hotel da época, onde se hospedavam os visitantes, para evitar o contato direto com os índios. Os tambos também eram utilizados como habitações de negros que trabalhavam nas estâncias. A urbanização em missões jesuíticas incluía a provisão de serviços básicos e qualidade da arquitetura, fontes de água, pontes, canalização para irrigação e moinhos. Em algumas missões havia muros e fossos para defesa contra ataques de inimigos.
Desaparecimento da Nação Guaranítica
A original sociedade teocrática jesuítico-guarani da Província Jesuítica do Paraguai na Bacia do Rio da Prata surgiu em 1604, sob o comando do Padre Torres, e suas Sete Missões, em território brasileiro, desapareceram a partir da Guerra Guaranítica [1754 - 1756].
O estopim da destruição da sociedade jesuítico-guarani foi o Tratado de Madrid, assinado pelas Coroas Ibéricas em 1750, porque incluía a transferência da Colônia do Sacramento para a Coroa Espanhola, em troca do território ocupado pelos Sete Povos das Missões na margem esquerda do rio Uruguai, e exigia que: habitantes guaranis seriam obrigados e retirar-se para territórios castelhanos. A exigência levou os guaranis à revolta e, em cortes ibéricas, aos Tratados do Pardo (1761) e Santo Ildefonso (1777), os quais deram à Coroa Espanhola a posse dos territórios das Missões e Sacramento. Tudo isso aconteça em meio a impasses práticos e diplomáticos criados pelo comportamento de representantes das duas cortes, enquanto os guaranis, liderados por Sepé Tiarajú, partiam para uma inglória luta armada, que destruiu os Sete Povos e suas estâncias, e resultou na morte de centenas de indígenas.
Ao final, quando nada mais restava do esforço civilizatório de jesuítas e guaranis, as lutas pela posse do território pelos chamados gaúchos resultaram na consolidação do Tratado de Madrid pela diplomacia ibérica. Na prática, a desordem que tomou conta da região após a Guerra Guaranítica permitiu aos portugueses ampliar seu território e fortalecer a capacidade da província para enfrentar ataques espanhóis. Ao final, as fronteiras definidas pelo Tratado de Madrid foram adotadas e cessaram os conflitos fronteiriços das coroas ibéricas na região, visto que a Colônia do Sacramento deixou de ser ameaça aos espanhóis e as Missões tornaram-se área de expansão dos portugueses. Frente a este jogo político, as missões jesuítico-guaranis não tinham maior importância.
A reação belicosa de governança jesuítica espanhola, cujo poder e sucesso foram alcançados graças à autonomia e aos poderes que desfrutava sobre o extenso e rico território, foi vista como afronta e desafio às decisões dos dois reinos. Estes fatos, mais interesses e manobras políticas na Europa e em capitais coloniais, levaram à perseguição e sucessivas expulsões dos jesuítas de Portugal [1759], Espanha [1767] e dos territórios da América, a partir de decreto assinado por Carlos III, rei da Espanha, em 1767. O apostolado jesuítico nas missões terminou em 1768 e eles foram substituídos por curas de outras congregações e por administradores civis, que não incentivaram os esforços para recuperação da cultura missioneira, mesmo porque a condição de vida não era a mesma e já não existia o entusiasmo de antes.
Relatos de viajantes e textos sobre missões na Província Jesuítica do Paraguai registram o modelo civilizatório no qual, mais do que qualquer outro na América colonial, houve rebatimento do poder político-religioso na urbanização e ocupação territorial.
O botânico e cientista francês Auguste de Saint-Hilaire visitou a região dos Sete Povos em 1820 e 1821 - meio século após a Guerra Guaranítica, e legou detalhado testemunho sobre prédios missioneiros ainda em uso ou em ruínas, sobre hábitos e costumes em cidades e campos que percorreu, e as opiniões que recolheu, em encontros e conversas, sobre a herança e as experiências de missões jesuíticas.
Edificações, aspectos urbanísticos e campos por onde passou são lindamente descritos, como em São Borja, onde foi alojado no antigo convento de jesuítas em que residia o comandante militar. Quando entrou "na igreja, que estava aberta, a grandiosidade desse edifício semidestruído, causou-me profundo sentimento de surpresa e respeito.” No longo e detalhado relato que segue, descreve o prédio, as pinturas e esculturas, os acabamentos e pisos que encontrou na Igreja. E conclui: “Embora ainda mantida com asseio (…) em breve este templo estará em ruínas." Depois visitou o que restava do grande conjunto arquitetônico original e com riqueza de detalhes aponta para as condições físicas e os usos que verificou, inclusive o pomar cercado por muros e a praça central. Em conversas, ouviu a opinião de que a “Província das Missões era florescente sob o governo dos Jesuítas e somente sob a égide destes padres podia florescer.”
Ao longo de sua viagem, Saint-Hilaire pernoitou em estâncias e visitou plantações que seguiam padrões do período jesuítico. Também avaliou lideranças que encontrou e ações de cabildos na gestão de povoamentos; descreve projetos urbanísticos nas missões, com belas igrejas sempre abrindo para o norte e praças cercadas por conjunto de prédios. Saint-Hilaire admirou o que viu, lamentou inúmeras ruínas e destacou o que ainda funcionava, como hospitais em São Luis e São Nicolau e a bela igreja de São Lourenço. Considerou São Miguel ”a mais conservada de todas as aldeias que hei visitado,” cuja bela "Igreja, construída pelos jesuítas, é toda de pedra e possui uma torre que servia de campanário, mas, há vários anos, um raio caindo destruiu-o completamente.” Algumas dessas ruínas foram retratadas um quarto de século depois (Fig. 8) e descritas por Lúcio Costa no século XX. A viagem do botânico francês pelas missões terminou em São João e Santo Ângelo, “última aldeia no quadrante leste,” onde encontrou mais ruínas, apesar da bela Igreja.
Figura 7 - Igreja de São Miguel Arcanjo em 1848
A cultura brasileira, em especial a gaúcha, retornou ao tema missioneiro nas primeiras décadas do século XX. Dentre os vários autores da época há Barbosa Lessa, que em 1929 adotou rica e colorida forma de narrativa para descrever os interesses políticos, grandes e pequenos, as guerras e batalhas, assim como relatou vivências e dificuldades do cotidiano missioneiro. Bem mais recentes e igualmente importantes, são textos de Lúcio Costa, que visitou a região e, ciceroneado por Augusto Meyer, elaborou o Relatório que sustentou o tombamento das Ruínas da Igreja de São Miguel pelo SPHAN (1937).
Nesta época, Erico Veríssimo recuperava a história das missões em O Continente , que dá inicio a O Tempo e o Vento como saga da cultura gaúcha. Érico descreve o cotidiano e a destruição das Missões na voz do Padre Alonzo e do índio Pedro, escrevendo o Padre que: "Se pensais que vivo no meio de bárbaros, estais completamente enganados. Nos Sete Povos começa a nascer uma das mais belas civilizações de que o mundo tem noticia." Segue descrição das virtudes cristãs, qualidade de vida e artes daquele povo, o jesuíta sonhando com um Mundo Novo, "sem senhores de terra nem corruptos", "a sociedade prometida nos Evangelhos (…), um império teocrático que havia de erguer-se acima das nações, acima do interesses materiais.” Mas em contraponto, o Padre também avaliava os desafios que tinha pela frente, as lições da história e os interesses contrários ao ideal jesuítico, já pensando no que fariam as coroas de Portugal e Espanha no futuro.
A estratégia e trabalho de jesuítas foram, mais tarde, analisados pelo historiador Moysés Vellinho, que examinou, a partir de outro entendimento histórico, a importância dos bandeirantes na ampliação do território português e o impacto do trabalho de jesuítas. Para Vellinho caberia valorizar a ação dos bandeirantes a partir do momento em que expulsaram os jesuítas espanhóis da região de Guaíra, porque:
… após o malogro das primeiras instalações, os missionários de Castela conseguiram, dentro de uma ampla e rígida experiência coletivista, fundada na servidão e sequestro do índio, conduzir à prosperidade os chamados Sete Povos das Missões, integrantes dos trinta povos da Província do Paraguai, e se este fato representava, em principio, grave risco para a complementação geográfica do Brasil, outras já eram, ao tempo, em consequência do posto conquistado pelos portugueses defronte de Buenos Aires, as disposições reinantes entre Lisboa e Madri a respeito das situações de fato que se iam consolidando à margem e ao arrepio dos tratados.
Ao final, avalia que: "Não sei se dentro do relativismo da história a causa da civilização não deve mais às violências do bandeirismo que a vã tentativa jesuítica de segregar o gentio e convertê-los aos altos padrões de vida espiritual."
As narrativas de Barbosa Lessa, Saint-Hilaire, Lúcio Costa, Érico Veríssimo e Moysés Vellinho ampliam a compreensão da experiencia teocrática de povos missioneiros, na medida em que tratam de características, formas, funcionamento e cultura de povoados e estâncias. Lúcio Costa, em especial, ressalta a arquitetura e urbanismo bem como aponta para o impacto da religião, do sistema administrativo e da cultura sobre habitações, urbanismo e uso do território.
Tombamento Do Urbanismo Teocrático Dos Sete Povos Das Missões
Lúcio Costa, em 1937, visitou seis dos Sete Povos das Missões e elaborou um Relatório para o então SPHAN, hoje IPHAN, no qual tratou do ordenamento urbano e observou que:
"Tudo se distribuía e ordenava com uma disciplina quase militar. Os jesuítas revelaram-se, nestas Missões, urbanistas notáveis, e a obra deles, tanto pelo espírito de organização como pela força e pelo fôlego, faz lembrar a dos romanos nos confins do império."
Ao avaliar a ocupação do território observou que cada "povo, com as respectivas estâncias para criação de gado, ficavam a uma distância razoável uns dos outros, formando a sequência deles um todo orgânico e perfeitamente articulado.” Suas observações relacionam Estado e Sociedade com padrões urbanísticos, morfológicos e funcionais, mas sem se aprofundar em questões da governança teocrática ou hábitos e vivências da sociedade guaranítica.
Lúcio Costa descreve as condições de vida, características e valores do urbanismo e da arquitetura de prédios de cada missão ou burgo, destacando tratar-se de “arquitetura jesuítica que nada tem a ver com a arquitetura jesuítica da Província do Brasil,” e que aquilo que restava devia-se à “intervenção de urgência procedida pela Comissão de Terras em 1928 em São Miguel”.
Os relatos de Lúcio Costa sobre o urbanismo e arquitetura das Missões são fundamentais para que se entenda o legado jesuítico-guarani e deveriam ser leitura obrigatória para todo estudante de urbanismo no Brasil, até mesmo pela excelência do texto, com análises apoiadas por citações, relatos de visitantes e opiniões que recolheu em suas andanças.
CONCLUSÃO
O rebatimento de crenças, do sistema de produção econômica e cultural, de convivência social e de governança da sociedade jesuítico-guarani na arquitetura e urbanismo têm características únicas e diferenciadas. Como sempre ocorre ao longo da história, a morfologia e a funcionalidade urbana recebem o impacto e retratam cada sociedade. Na América pré-colombiana (1492) houve bons exemplos, como Tenochtitlán, capital do Império Asteca que Cortéz conquistou; e Cusco, capital do Império Inca, conquistado por Pizarro. Ambas retratavam a estrutura de poder, práticas e crenças religiosas, tecnologias e valores sociais de seus impérios.
No transcorrer do Século XX houve exemplos de cidades construídas a partir de utopias ou modelos de sociedades ideais e, na reconstrução de cidades na Europa após a II Grande Guerra, houve forte influencia de políticas social-democratas na aceitação de conceitos e na prática do urbanismo modernista. Novos ideais políticos que surgiram no século passado influenciaram os fundamentos, diretrizes e metodologias do urbanismo. No cenário europeu e americano, como lembra Tony Judt,
“o consenso pela social democracia e as instituições para o bem estar (welfare) nas décadas da pós-guerra coincidiram com alguns dos piores exemplos de planejamento urbano e de habitações sociais dos tempos modernos. Desde a Polônia Comunista passando pela Suécia democrática, trabalhismo Britânico e Gaulismo francês até o South Bronx, planejadores super confiantes e insensíveis modelaram cidades e subúrbios com invivíveis e invisíveis áreas habitacionais. (tradução livre)
Esta foi a época de ouro do planejamento de prédios habitacionais e subúrbios destinados às populações de classe média e de menor renda, muitas destas de migrantes; um período em que o poder público e os planejadores "sabiam" o que era melhor na engenharia social que promoviam em nome da população, mesmo sem saber o que seria melhor para ela.
Na União Soviética, desde os anos 30, o lema era: “nacional na forma, socialista no conteúdo” e, no pós-guerra do período stalinista, os conjuntos habitacionais eram equipamentos urbanos pré-fabricados de má qualidade e rodeados por áreas verdes. Em contrapartida, catedrais do comunismo destacavam-se no cenário urbano, como estações de metrô, teatros, palácios da cultura e praças. Característicos de regimes comunistas foram os edifícios monumentais, que abrigavam prioridades da ditadura do proletariado; a magistrale, largo bulevar para cerimônias, construída na capital dos maiores países socialistas; e as microrayon (microrregiões), enormes conjuntos habitacionais dotados da necessária infraestrutura.
Nos dias de hoje há complexas e mutantes cidades e metrópoles que retratam, igual ao passado mais longínquo, aquilo que nações e sociedades são e das quais são produtos. Neste cenário cabe às ciências urbanísticas entender a práxis e causalidades que regem cada condição urbana e ambiental, para então promover melhores condições de vida e de cidadania para a população.
Jorge Guilherme FRANCISCONI, BSB, fevereiro de 2019